BILL GATES EM MEDRÕES

(Última edição: domingo, 5 de fevereiro de 2006 às 22:48)
PÚBLICO • DOMINGO, 5 FEV 2006

António Barreto

No dia em que Bill Gates se
passeou por Lisboa, um
canal de televisão, não
recordo qual, decidiu fazer
uma breve reportagem em Trás-os-
Montes. Não sei se foi de propósito ou
por coincidência, mas foi apropriado. Os
jornalistas apresentaram-se em Medrões,
aldeia e freguesia do concelho de Santa
Marta de Penaguião, distrito de Vila Real.
Visitaram a escola primária que recebe,
pelo que se percebeu, duas a três dezenas
de crianças da localidade e da vizinhança.
Trata-se de escola tipicamente rural. Uma
senhora, mãe ou professora, informa que
a escola tem já banda larga. Mas os alunos
têm de se deslocar a pé, alguns a dois ou
três quilómetros, pois não há transporte
público, nem sequer municipal. Por
aqueles lados, para que se saiba, quando
faz frio... faz frio! E quando chove... chove!
A escola não tem facilidades para tomar
refeições, pelo que as crianças têm de ir a
casa almoçar e voltar para as aulas da tarde.
Para muitos, quatro percursos por dia,
cinco a dez quilómetros entre caminhos de
montanha e estrada nacional com curvas
e carros. O abastecimento de água faz-se a
partir de um poço, pelo que os alunos, por
precaução, levam consigo umas garrafas
de água potável. Soubemos também que
a escola, perto da estrada, não tem vedação
nem protecção. Segundo informa
a cidadã, quando sai uma bola fora do
recreio e cai na estrada, os miúdos, com
a imprevidência habitual, correm a apanhá-
la. Mas, motivo de orgulho, a escola
tem banda larga!

O PRESIDENTE DA CÂMARA DE SANTA
Marta de Penaguião foi interrogado sobre
o assunto. O homem falava com uma
arrogância inusitada. Não via riscos nenhuns
na ausência de vedação. Quanto
à água, nunca tinha havido problema.
Acrescentou que se esse era motivo de
reivindicação, “não havia problemas, a
Câmara ia trazer água da companhia”. E
asseverou que não haveria transportes
camarários, pois que a tanto não era obrigado!
A lei, disse, “só obriga a assegurar
transportes em distâncias superiores a
três quilómetros”. Sobre a possibilidade
de organização de uma cantina ou sala de
refeições, garantiu, com fastio, que “havia
planos”. Apesar de incomodado com estas
perguntas descabidas e estes problemas
menores, o autarca não escondia a sua satisfação
pela oportunidade de falar para a
televisão e mostrar a sua rústica soberba.
E tinha banda larga!

ENTRETANTO, NA CAPITAL, BILL GAtes
dava brilho ao carrossel organizado pelo
governo em volta dele. Deram-lhe uma
grã-cruz. Fez discursos e deu entrevistas.
Recebeu o presidente da União Europeia
Durão Barroso (disse bem, recebeu), que
não quis faltar ao beija-mão. Fez uma conferência.
Deu uma aula a jovens seleccionados.
Presidiu a um Fórum global. E, em
cerimónia pública, acolheu oito ministros
oito e um Primeiro-ministro um, com os
quais assinou dezoito protocolos de cooperação
dezoito. Por via destes, a sua
empresa vai associar-se à modernização
da Administração Pública, dos serviços
fiscais, da educação, da ciência e de tudo
o resto. Os beneficiados serão um milhão
de jovens um.

APESAR DE SABER QUE A BANDA
larga acontecerá de qualquer maneira,
com ou sem governo, o mesmo sucedendo
com os computadores e a informática em
geral, não nego a eventual bondade destes
planos. Ou antes: espero para ver. Se
resultarem, fico encantado. O que choca
é o frenesim do Governo, a sua obsessão
com a propaganda. Como já toda a gente
percebeu, tivemos, a coincidir com as eleições
presidenciais e com os respectivos
desaires governamentais, um turbilhão
de iniciativas e de cerimónias de pura
publicidade. Uma empresa que vai construir...
Um grupo que pensa fazer... Uma
multinacional que está disposta a encarar
a hipótese... Pessoas que querem “fazer
coisas”, como agora se diz... Boas ou más,
as promessas sucederam-se. Sempre com
ministros a correr e o primeiro-ministro
a saltar. Acordos de princípio, intenções,
ideias que ainda não são projectos,
projectos que ainda não são programas,
propósitos, promessas de investimento,
tudo serve para inaugurar, assinar e organizar
“eventos” solenes. Energia, ciência,
computadores, imobiliário, vacinas, móveis,
tudo contribui para montar o circo
do governo. A maior parte dos projectos
está incompleta, é ainda incerta, falta saber
quanto investimento vem e quanto o
governo oferece, mas nada disso incomoda.
Pormenores... Certo é que, deste modo,
podem fazer-se ainda, para cada projecto,
mais duas ou três inaugurações.

O “EVENTO” BILL GATES SUPEROU
evidentemente tudo e todos. Sempre era
o homem mais rico do planeta. Uma das
multinacionais mais poderosas do mundo.
O maior filantropo da história. Só me
pergunto qual seria o outro país europeu
que se submeteria a este circo e se envolveria
nesta cerimónia de propaganda
própria de atrasados.

ENTRETANTO, EM MEDRÕES, A EScola
primária tem banda larga, não tem
vedação, água, cantina ou transporte
para as crianças. A escola rural de Medrões
já não é típica de Portugal, o que
não justifica o estado em que se encontra.
As escolas rurais estão a desaparecer a
ritmo acelerado. Muitas vezes, em pior
situação estão as escolas dos subúrbios
das grandes cidades. O desenvolvimento
desigual é assim, sempre foi. Há sectores
e áreas de actividade onde as vanguardas
avançam e melhoram, deixando para trás
os atrasados, os mais pobres ou os mais
isolados. Sabemos que é assim e espera-se
que os adiantados sirvam de estímulo para
que os outros, por cópia e emulação, sigam
o exemplo. Isto é o que vem nos livros
e o que a realidade nos diz todos os dias.
Mas não deixa de ser chocante que as autoridades,
os responsáveis pelas políticas
públicas, se entreguem sistematicamente,
com volúpia e exibicionismo, a preferir o
vistoso e a investir no que parece moderno.
E que sejam as próprias autoridades
a cavar o foço da desigualdade.

COM OU SEM BANDA LARGA, UM PAÍS
deveria ter bem mais orgulho nas suas
escolas aquecidas no Inverno, nos seus
transportes escolares, na água potável
nas escolas, nas cantinas para estudantes.
Para já não falar de alunos que tenham
positiva em matemática, que aprendam
português e que saibam escrever. Ou que
não passem quatro horas por dia diante da
televisão e três na Internet. Ao apetrechar
as escolas de equipamentos e materiais
pedagógicos indispensáveis, o governo e
as autarquias estão apenas e exclusivamente
a cumprir o seu dever. Nada mais.
E não o cumprem quando não fornecem
água quente, aquecimento, transportes
ou cantinas. Nada mais simples. Por que
deveríamos ficar excitados quando as
autoridades dão foros de generosidade
e de visão estratégica aos seus próprios
actos de cumprimento do dever? E por
que são tratados de pessimistas todos os
que justamente mostram que as mesmas
autoridades não cumprem deveres bem
mais simples, mas menos vistosos?

O ESTADO E AS AUTARQUIAS NÃO
cumprem os seus deveres quando deixam
as médias dos exames de Matemática, Português,
Física e outras baixar a medíocres
profundezas. E não cumprem os seus deveres
quando não conseguem examinar
e reformar os programas, os professores
e os métodos de ensino da matemática.
Como os não cumprem quando deixaram
desenvolver-se um enorme e monstruoso
universo, o dos manuais escolares, onde
proliferam erros e disparates. Ah! Como
eu desejaria viver num país que se sentisse
orgulhoso das suas escolas confortáveis,
das suas crianças a falar e escrever
um português decente, dos seus jovens
a perceber o essencial da Matemática e
dos seus manuais escolares rigorosos e
adequados! Quanto eu gostaria que o meu
país não ficasse deste modo encandeado
com as lentejoulas e o pechisbeque! Como
seria bom que o governo do meu país cumprisse,
em silêncio, o seu dever! ?

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