Quatro ilustres ex-alunos do Alexandre Herculano estiveram ontem a desfiar as suas recordações e afectos do centenário liceu portuense. Histórias carregadas de humor e ternura que contagiaram a sala. POR NUNO CORVACHO
MEMÓRIAS FELIZES DE ILUSTRES ALEXANDRINOS
Estamos todos muito mais novos! o comentário de Rui Vilar, ao dirigir-se àquela plateia cheia de gente para cima dos sessenta anos e preparada para contar e ouvir contar histórias do passado, podia ser tomado por um exercício de ironia, não fosse o caso de todos eles terem ali rejuvenescido de verdade. Não há, de facto, outro nome a dar àquilo que aconteceu ontem à tarde no anfiteatro do liceu portuense Alexandre Herculano, que por estes dias comemora o seu centésimo aniversário: o bruá cúmplice das vozes, os suspiros de contentamento, os risos a abrirem-se num leque furtivo e um inconfundível desassossego juvenil a tomar definitivamente conta da sala. Como se aquele anfiteatro de cidadãos grisalhos e respeitáveis, ali reunido para comemorar a memória da escola onde cada um deles passara os seus irrepetíveis anos de adolescência, se tivesse magicamente transformado numa sala de aula e um qualquer professor estivesse a ponto de reaparecer a qualquer momento para repor a ordem. Alguns já lá não deviam estar desde o tempo em que haviam completado os seus estudos, décadas atrás. Decerto já teriam contado melancolicamente as rugas e cabelos brancos uns dos outros mas verificado com ternura que a cintilação nos olhares continuava igual. Agora, porém, havia ali um motivo especial para os circunstantes redobrarem de atenção. Estavam ali quatro ilustres ex-alunos que tinham sido chamados a desfiar as suas memórias afectivas: além do presidente da Fundação Gulbenkian, Rui Vilar (que disse ter andado no liceu de 49 a 56 do século passado), o empresário Belmiro de Azevedo (que lá entrou há 57 anos), o cientista Sobrinho Simões (aluno entre 57 e 64) e o economista António Borges (o mais novo, que saiu do liceu em 1967). Já lá vão quase cinquenta anos, mas Sobrinho Simões lembra-se bem do dia em que o pai o largou à porta do Alexandre Herculano e lhe disse: E agora desenrasca-te!. Ainda habituado à pequena escola 33-A da Rua de Costa Cabral, o rapazinho de dez anos logo ficou impressionado com a extensão dos corredores, a altura das paredes e sobretudo o tamanho dos colegas. A D. Maria da Graça, que foi a minha professora na instrução primária, tratava-nos por tu. Ali, no liceu, éramos tratados por senhores. Ora isso foi um salto enorme!. Rui Vilar também não foi indiferente àquele casarão enorme e solene da Avenida de Camilo e ao impacte dos cartazes dissuasores que algum espírito salazarista colocara em pontos estratégicos do liceu com frases tão edificantes como No barulho ninguém se entende, é por isso que na revolução ninguém se respeita ou Se soubesses o que custa mandar, gostarias de obedecer toda a vida. Belmiro de Azevedo chegou a ser por um curto período chefe de quina na Mocidade Portugue- sa, mas, logo que pôde, meteuse em actividades de xadrez como desculpa para não usar a farda. Já Vilar, animado da mesma intenção, optou por se inscrever em aulas de rádio, tendo andado um ano inteiro para construir um aparelho, sem o conseguir. Mas nenhum deles deixa de reivindicar memórias estruturantes do Alexandre Herculano. Belmiro de Azevedo, por exemplo, disse ter cimentado por lá a ética de tolerância zero que lhe conforma a vida zero erros, zero mentiras e ganho o gosto pela Matemática que, para ele, é um instrumento tão natural como andar de bicicleta. António Borges vai mais longe, ao considerar-se apaixonado pela ciência dos números, em grande parte por influência de um professor, e já não tanto pela parte musical, cujas aulas de canto coral eram um verdadeiro fiasco. Rui Vilar recordou a influência de Óscar Lopes (que, apesar de comunista, nos deu a ler a Pátria Portuguesa, de Júlio Dantas, por ser um livro bem escrito), a tertúlia Caminho, que ele próprio e alguns colegas fundaram e onde se discutiram temas tão sisudos como a Música de Beethoven e a Poesia Romântica e Simbolista, bem como as sessões do cineclube liceal em que pela primeira vez se viram filmes de Jacques Tati e do neo-realismo italiano. Para Sobrinho Simões, a rigidez curricular do ensino ministrado à época e a prevalência da memorização não foram obstáculo a que os professores tivessem também sabido motivar os alunos no gosto pelo conhecimento. Se a semente ficar, pode ser que se cumpra a profecia avançada no início da sessão pelo presidente da Assembleia de Escola, José Luís Sarmento: Que daqui a cinquenta anos possa um sucessor meu ter a honra de se dirigir a uma assembleia de alexandrinos tão ilustre e tão rica de exemplos como esta. Quem sabe não estarão hoje nas nossas salas de aula os cientistas, empreendedores, artistas, estadistas e filantropos do futuro?
Tive um extraordinário professor de Matemática, um homem já com uma certa idade, discreto e humilde. Despertava o interesse e fez com que eu me apaixonasse pela Matemática. Se não fosse ele, eu teria de certeza seguido uma carreira diferente. No meu tempo, não havia raparigas no liceu. O ambiente era mais sossegado. Havia menos concorrência. É que nestas idades elas são mais produtivas... ANTÓNIO BORGES ECONOMISTA
Havia um rapaz gordo, simpático, o Vieira, que tinha um rosto permanentemente sorridente. A certa altura, o Sena Esteves, que era o professor de Química, achou que o miúdo estava a gozar com ele e deulhe uma lambada. No dia seguinte, depois de se ter apercebido do erro, deu-lhe um chocolatezinho com uma medalha e pediu-lhe desculpa. Houve uma vez em que eu trepei pelo cano da água até à sala onde estava a decorrer um exame de Desenho. Consegui fazer o teste no lugar de um aluno que estava em dificuldades e ele acabou por ganhar o prémio. BELMIRO DE AZEVEDO PRESIDENTE DO GRUPO SONAE
Tínhamos um professor de Inglês, o José Luís Afonso, que passava a vida a trabalhar nos seus dicionários e misturava permanentemente as duas línguas. Stop talking, meninos!, dizia ele. Em 53/54, cinco alunas começaram a frequentar o liceu que até então era só de rapazes. Tinham um recreio em espaço próprio que logo foi baptizado de gineceu. Aquelas raparigas inevitavelmente provocaram por ali terramotos sentimentais... RUI VILAR PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO GULBENKIAN
Nós éramos miúdos e, no início do liceu, éramos confrontados com coisas que não conseguíamos interpretar muito bem. O meu colega Zé Marcelino veio uma vez ter comigo para me dizer: Já sei donde é que vêm as crianças!. Donde?, perguntei eu. Do rabo, disse ele. Eu era muito mau a Canto Coral. E fiz uma prova tão ordinária que o professor até pensou que eu tinha feito de propósito. De maneira que ele acabou por me pôr juntamente com o coro. Mas, quando percebeu o desastre que eu era, disse-me logo: Bem, tu agora estás aí, mas ficas calado!. SOBRINHO SIMÕES INVESTIGADOR NA ÁREA DA MEDICINA