Quem nos liberta
desta cruz?
Expresso, 10 de Dezembro de 2005
«Esta religião, baseada num incontrolável
relativismo é o 'eduquês'.»
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DEPOIS de muito se discutir a famosa questão dos crucifixos
nas salas de aula (onde apenas resistia em 20 escolas, por todo o país), talvez
seja altura de discutir algo verdadeiramente importante para a educação dos
nossos filhos. Porque é uma cruz bem mais pesada do que qualquer crucifixo o
ataque sistemático que vem sendo feito ao conhecimento científico, ao saber e
aos valores.
Vejamos um exemplo esclarecedor: está numa comunicação de
João Filipe de Matos, um dos dirigentes do Centro de Investigação em Educação
da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e director da sua «Revista
de Educação». Este académico, responsável pela formação de professores, parte
de um princípio claro, recorrendo a uma citação: «nas sociedades capitalistas, a escola justifica e produz desigualdades».
Por isso, defende que - e cito para que não restem dúvidas -
«a disciplina de matemática deve ser
urgentemente eliminada dos currículos do ensino básico». Matos prefere que
se ensine - volto a citar - «educação
matemática». Ou seja, o professor tem uma religião e quer impô-la. E o seu
primeiro mandamento é que nada se deve ensinar, salvo ensinar a aprender.
O mesmo responsável dá exemplos delirantes. Se o casal Silva
quer ir do Campo Grande ao Parque das Nações, com os seus dois filhos, e a viagem
de autocarro custa um euro por bilhete, quanto irá pagar?
Ora a resposta normal seria quatro euros. Mas isso é
matemática antiga, cheia de mitos a que Matos quer pôr um fim. Ao cabo de
vários argumentos sociais, ecológicos e políticos, Matos acha que quatro é
muito, porque deveria haver desconto.
EU SEI que para a maioria dos leitores o professor Matos
parece fruto da minha imaginação. Mas não é. Existe e, como ele, existem
inúmeros seguidores desta religião que, um pouco por todo o Ministério da Educação,
alastra as suas influências. Não só em Portugal, mas à volta do mundo. Esta
espécie de religião, baseada num incontrolável relativismo, assentou arraiais
na política da educação e criou o seu próprio credo - o «eduquês».
Graças a ela, os nossos filhos sofrem com reformas atrás de
reformas. Cada vez sabem menos e, paradoxalmente, cada vez gastam mais tempo na
escola.
Graças a esta religião, de que o prof. João Filipe Matos é
um dos mais distintos hierofantas, os valores, a sabedoria e o conhecimento são
constantemente postos em causa, como se fosse possível educar sem regras, mas
apenas com excepções. A viagem do casal Silva ao Campo Grande é esclarecedora
do seu incontrolável relativismo: 4x1 nem sempre são quatro; a resposta certa
depende do ponto de vista do observador. E qual é o ponto de vista do prof.
Matos? Lembrem-se da citação inicial: nas sociedades capitalistas, a escola
justifica e produz desigualdades. Ele quer-nos todos iguais, autómatos de um
sistema comandado pelas suas ideias sobre o mundo e a vida. Do seu lugar da
academia, o prof. Matos forma os professores dos nossos filhos. E todos nós
acabamos a carregar a cruz que é a desgraça do seu ensino. Quem nos liberta
desta cruz?
hmonteiro@mail.expresso.pt
Do crucifixo à
cruzada contra as ciências da educação
(Direito de
resposta)
Os
meios de comunicação social desempenham um papel fundamental na nossa sociedade
informando, esclarecendo, questionando, perturbando. O sarcasmo é um recurso
fundamental do jornalista e do comentador, que procura ironizar, estremar e até
deformar uma situação, para a tornar cómica e objecto de desprezo dos
respectivos leitores. No entanto, há um ponto para além do qual o exercício do
humor deixa de ser saudável e passa a ser mistificador, ofensivo e socialmente
inaceitável.
É o
que se passa com a prosa de Henrique Monteiro, na sua coluna no Expresso de 10.Dez.2005. Esta coluna
dedica-se a caricaturar as posições de João Filipe Matos, que, de resto,
falsamente apresenta como um dos dirigentes do centro de investigação em
educação, entidade em que este docente não assume qualquer cargo de
responsabilidade. Interpretando a seu gosto a escrita académica marcada por
uma linguagem própria e por categorias necessariamente diversas das do senso
comum , não é difícil ao comentador encontrar múltiplos pontos de admiração e
até de escândalo nas palavras deste docente, que é livre de ter as suas
opiniões e perspectivas próprias sobre os problemas educativos e sociais.
Gostaria, no entanto, de deixar claro que no
Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
defende-se a importância de um ensino da Matemática de qualidade, alicerçado em
programas e políticas educativas que valorizem esta disciplina como um elemento
fundamental do património cultural de todos nós e numa formação de professores
contemplando as vertentes científica, educacional e prática, preocupações que
naturalmente estendemos a todas as disciplinas científicas. Defende-se e
pratica-se igualmente um ensino e uma formação de professores marcada por
valores de respeito pela verdade, pelo rigor, pela cultura, pela diferença,
pela dignidade e pela atenção aos interesses e necessidades dos educandos.
Henrique
Monteiro nem consegue ser original. Limita-se a repetir a lengalenga de uns
tantos outros que, sem perceber grande coisa do que falam (o que sabe ele sobre
o ensino da Matemática nas escolas?), se limitam a procurar nas instituições de
formação de professores um bode expiatório para os problemas de que,
reconhecidamente, padece a educação em Portugal. Não deixa de ser curioso vê-lo
a esgrimir o fantasma da religião e seguir, ele próprio, a lógica de cruzada,
procurando queimar o inimigo na praça pública com base num libelo acusatório
sumário, que no fundo se resume ao estafado fantasma do eduquês.
Um
Subdirector pode ter os acessos de mau humor que entender mas não deve ser
confundido com o órgão de comunicação social onde escreve. Estamos, por isso, à
disposição do Expresso, como temos
estado de outros órgãos de comunicação social, para dar a conhecer o nosso
trabalho, as nossas posições sobre a educação, as nossas preocupações e
projectos. Os jornalistas e comentadores inteligentes percebem que os problemas
da educação são sobretudo reflexo dos problemas da sociedade e das políticas
educativas e não o resultado da aplicação das teorias dos investigadores cujo
impacto na cena educativa é de resto muito desigual. Por isso mesmo, mais vale
procurar contar com o contributo de quem estuda as questões da educação para
compreender e enfrentar estes problemas do que prosseguir a campanha primária e
inútil que só desvaloriza aqueles que nela se envolvem.
João
Pedro da Ponte
Presidente do Departamento de Educação da
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
Coordenador Científico do Centro de
Investigação em Educação
A qualidade da formação dos professores, como
a dos médicos, engenheiros ou jornalistas, é um problema sempre em aberto e a
merecer questionamento. A Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa é uma
das instituições que ao longo dos anos tem prestado esse serviço a um nível que
reputamos de valor mas que caberá a
outros reconhecer e qualificar.
Os maus resultados que observamos no Ensino
em Portugal são inquestionáveis e alguma responsabilidade pode ser atribuída às
instituições de formação de professores, como a muitos outros factores que
recentemente temos visto discutidos publicamente. Não é abonatório de um jornal
de referência a invocação primária de um Grande Satã como a causa única de um
qualquer problema.
Mais grave do que a ligeireza do artigo
parece ser a inconsciência por parte do autor da peça sobre o que é a
Universidade. As palavras referenciadas são retiradas de um texto de cariz
universitário onde, por definição de Universidade, o autor pôde exprimir
livremente a sua teoria, por bizarra ou incompreensível que possa parecer.
O método do jornalista é o da crucificação
das ideias na praça pública. O passo seguinte é queimar a publicação e se a
fogueira for suficiente podemos incluir o autor. Esta percepção sobre a
Universidade, tão tradicionalmente Inquisitorial e tão vivamente expressa
pelo Subdirector do Expresso é uma das razões do persistente atraso cultural e
intelectual de Portugal (mas não será decerto a única). O Expresso presta assim
um serviço inestimável à atávica burrice nacional mas ainda assim mostra o
cuidado que se deve ter quando se escreve sobre cruzes.
Nota : ao autor e leitores interessados posso
recomendar a edição de 27 de Abril de 2000 do jornal New York Times, onde na
primeira página se pode ler o artigo The New, Flexible Math meets Parental
Rebellion. Facilmente se compreende que o problema não é local, não é novo,
não é simples, e que se pode tratar jornalisticamente a um nível muito mais
elevado.
Nuno M. Guimarães
Presidente do Conselho Científico e Directivo
Faculdade de Ciências da Universidade de
Lisboa