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Dives in misericordia Ioannes Paulus PP. II 1980 11 30 IntraText CT - Texto |
A Igreja professa e proclama a misericórdia de Deus
13. A Igreja deve professar e proclamar a misericórdia divina em toda a sua verdade, tal como nos é transmitida pela Revelação. Nas páginas anteriores do presente documento, procurei delinear ao menos o perfil desta verdade, tão ricamente expressa em toda a Sagrada Escritura e na Tradição.
Na vida quotidiana da Igreja a verdade sobre a misericórdia de Deus, expressa na Bíblia, repercute-se como eco perene em numerosas leituras da Sagrada Liturgia. E o autêntico sentido da fé do Povo de Deus percebe-a bem, como atestam várias expressões da piedade pessoal e comunitária. Seria certamente difícil enumerá-las e resumi-las todas, dado que a maior parte delas está só gravada vivamente no íntimo dos corações e das consciências humanas. Há teólogos que afirmam ser a misericórdia o maior dos atributos e perfeições de Deus; e a Bíblia, a Tradição e toda a vida de fé do Povo de Deus oferecem-nos testemunhos inesgotáveis. Não se trata aqui da perfeição da imperscrutável essência de Deus no mistério da própria divindade, mas da perfeição e do atributo, graças aos quais o homem, na verdade íntima da sua existência, se encontra com maior intimidade e maior frequência em relação autêntica com o Deus vivo. De acordo com as palavras que Cristo dirigiu a Filipe 112, «a visão do Pai» — visão de Deus mediante a fé — tem precisamente no encontro com a sua misericórdia um momento singular de simplicidade e verdade interior, como aquele que nos é dado ver na parábola do filho pródigo.
«Quem me mê, vê o Pai» 113. A Igreja professa a misericórdia de Deus, a Igreja vive dela na sua vasta experiência de fé e também no seu ensino, contemplando constantemente a Cristo, concentrando se n'Ele, na sua vida e no seu Evangelho, na sua Cruz e Ressurreição, enfim, em todo o seu mistério. Tudo isto, que forma a «visão» de Cristo na fé viva e no ensino da Igreja, aproxima-nos da «visão do Pai» na santidade da sua misericórdia. A Igreja parece professar de modo particular a misericórdia de Deus e venerá-la, voltando-se para o Coração de Cristo. De facto, a aproximação de Cristo, no mistério do seu Coração, permite-nos deter-nos neste ponto da revelação do amor misericordioso do Pai, que constituiu, em certo sentido, o núcleo central — e, ao mesmo tempo, o mais acessível no plano humano — da missão messiânica do Filho do Homem.
A Igreja vive vida autêntica quando professa e proclama a misericórdia, o mais admirável atributo do Criador e do Redentor, e quando aproxima os homens das fontes da misericórdia do Salvador, das quais ela é depositária e dispensadora. Neste contexto, assumem grande significado a meditação constante da Palavra de Deus e, sobretudo, a participação consciente e reflectida na Eucaristia e no sacramento da Penitência ou Reconciliação.
A Eucaristia aproxima-nos sempre do amor que é mais forte do que a morte. Com efeito, «todas as vezes que comemos deste Pão e bebemos deste Cálice», não só anunciamos a morte do Redentor, mas proclamamos também a sua ressurreição, «enquanto esperamos a sua vinda gloriosa» 114. A própria acção eucarística, celebrada em memória d'Aquele que na sua missão messiânica nos revelou o Pai por meio da Palavra e da Cruz, atesta o inexaurível amor, em força do qual Ele deseja sempre unir-se e como que tornar-se uma só coisa connosco, vindo ao encontro de todos os corações humanos.
O sacramento da Penitência ou Reconciliação aplana o caminho a cada um dos homens, mesmo quando sobrecarregados com graves culpas. Neste Sacramento todos os homens podem experimentar de modo singular a misericórdia, isto é, aquele amor que é mais forte do que o pecado. Convém que este tema fundamental apesar de já tratado na Encíclica Redemptor Hominis, seja abordado mais uma vez.
Porque existe o pecado no mundo, neste mundo que «Deus amou tanto ... que lhe deu o seu Filho unigénito» 115, Deus que «é amor» 116 não se pode revelar de outro modo a não ser como misericórdia, a qual corresponde não somente à verdade mais profunda daquele amor que Deus é, mas ainda a toda a verdade interior do homem e do mundo, sua pátria temporária.
A misericórdia em si mesma, como perfeição de Deus infinito é também infinita. Infinita, portanto, e inexaurível é a prontidão do Pai em acolher os filhos pródigos que voltam à sua casa. São infinitas também a prontidão e a força do perdão que brotam continuamente do admirável valor do Sacrifício do Filho. Nenhum pecado humano prevalece sobre esta força e nem sequer a limita. Da parte do homem pode limitá-la somente a falta de boa vontade, a falta de prontidão na conversão e na penitência, isto é, o permanecer na obstinação, que está em oposição com a graça e a verdade, especialmente diante do testemunho da cruz e da ressurreição de Cristo.
É por isso mesmo que a Igreja professa e proclama a conversão. A conversão a Deus consiste sempre na descoberta da sua misericórdia, isto é, do amor que é «paciente e benigno» 117 como o é o Criador e Pai; amor ao qual «Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo» 118 é fiel até às últimas consequências na história da Aliança com o homem, até à cruz, à morte e à ressurreição do seu Filho. A conversão a Deus é sempre fruto do retorno para junto deste Pai, «rico em misericórdia».
O autêntico conhecimento do Deus da misericórdia, Deus do amor benigno, é a fonte constante e inexaurível de conversão, não somente como momentâneo acto interior, mas também como disposição permanente, como estado de espírito. Aqueles que assim chegam ao conhecimento de Deus, aqueles que assim O «vêem», não podem viver de outro modo que não seja convertendo-se a Ele continuamente. Passam a viver in statu conversionis, em estado de conversão; e é este estado que constitui a característica mais profunda da peregrinação de todo homem sobre a terra in statu viatoris, em estado de peregrino. É evidente que a Igreja professa a misericórdia de Deus, revelada em Cristo crucificado e ressuscitado, não somente com as palavras do seu ensino, mas sobretudo com a pulsação mais profunda da vida de todo o Povo de Deus. Mediante este testemunho de vida, a Igreja cumpre a sua missão própria como Povo de Deus, missão que participa da própria missão messiânica de Cristo, e que, em certo sentido, a continua.
A Igreja contemporânea está profundamente consciente de que só apoiada na misericórdia de Deus poderá realizar as tarefas que derivam da doutrina do Concílio Vaticano II; e em primeiro lugar, a tarefa ecuménica que tende a unir todos os que crêem em Cristo. Empregando múltiplos esforços neste sentido, a Igreja confessa com humildade que somente o amor, que é mais poderoso do que a fraqueza das divisões humanas, pode realizar definitivamente a unidade que Cristo pedia ao Pai, e que o Espírito não cessa de pedir para nós «com gemidos inexprimíveis» 119.