Destruir para criar

(Última edição: segunda-feira, 11 de abril de 2005 às 23:48)
DN, 11 de Abril de 2005

José Correia Guedes

Professor da Católica

Destruir para criar

Mudança. No futuro, todas as chamadas fixas irão migrar para a Internet e serão suportadas inteiramente por software, dispensando a necessidade de infra- -estrutura dedicada como acontece actualmente. As telecomuni-cações fixas serão um serviço de Internet inteiramente gratuito, tal como é hoje o e-mail e os web-browsers

Grandes transformações económicas, com impacto generalizado no bem-estar da sociedade, conseguiram-se sempre à custa de rupturas com interesses instalados. Foi assim na aurora da revolução industrial, com a introdução do conceito de fábrica no sentido moderno, e é hoje com as novas tecnologias e processos de negócio assentes na Internet.

Há 300 anos atrás a actividade têxtil na Inglaterra baseava-se no sistema de produção domiciliária - o chamado putting-out. Negociantes de têxtil distribuíam pelas famílias das vilas e aldeias matérias-primas para serem tratadas e transformadas nos seus próprios lares, recolhendo, posteriormente, o produto já processado para venda ao consumidor final. Este sistema era extremamente popular. Os trabalhadores gostavam da ausência de supervisão e da possibilidade de poder definir os próprios ritmos de trabalho. Em termos económicos o sistema fazia sentido porque os bens de capital exigidos no processo de transformação eram modestos e não permitiam economias de escala. Para quê juntar toda a produção num local único, sob o mesmo tecto, se daí não decorriam ganhos de eficiência significativos?

Foi a introdução da máquina a vapor - e dos equipamentos complementares que exploravam a energia e a força libertada pela máquina a vapor - que alterou a situação. A máquina a vapor deu uma vantagem decisiva ao modelo de produção centrado numa fábrica e assente na produção em massa. Os produtores domiciliários resistiram enquanto puderam, vituperando a nova tecnologia como uma invenção do diabo, e os novos industriais como piratas do bem-estar alheio. Data desta altura o movimento dos luditas bandos de homens armados assaltavam à noite as fábricas para destruir as máquinas, numa cruzada pela defesa do seu modo de vida. Para os novos industriais, a reacção hostil da população tornou difícil encontrar mão-de-obra disposta a trabalhar nas fábricas. A solução foi procurar entre os mais desfavorecidos e com mais dificuldade em recusar uma oferta de trabalho: crianças, muitas vezes recrutadas dos orfanatos e de asilos para pobres, e mulheres, especialmente as novas e solteiras.

Hoje, é a Internet uma das principais ameaça aos interesses estabelecidos. A indústria discográfica foi uma das suas primeiras vítimas. Empresas como a Napster e depois a KaZaA, com os seus modelos inovadores de partilha de ficheiros, tornaram obsoleto o sistema tradicional de produção e comercialização de música. Os incumbentes usaram todos os meios ao seu alcance para neutralizar os novos piratas; conseguiram, finalmente, fechar a Napster por sentença judicial. Tarde de mais o génio já estava fora da lâmpada. Os gigantes discográficos de uma outra era atrás já tinham sido, irremediavelmente, ultrapassados pela história. Hoje é a Apple com o ipod o modelo de negócio triunfante na distribuição de conteúdos musicais. Paga um montante simbólico por um single (começou por ser 1 dólar) e pode ouvi-la quantas vezes quiser, quando quiser, onde quiser. Há poucas semanas atrás, o Financial Times relatava que a venda de singles descarregados pela Net ultrapassou pela primeira vez a venda de CD por canais tradicionais.

Outro teatro de operações em que a Internet começa a criar carnificina entre os incumbentes é o das telecomunicações fixas. Niklas Zennstrom e Janus Friis, dois jovens escandinavos, depois de fundarem a KaZaA, criaram a Skype, uma incarnação da Napster para o sector das telecomunicações. Enquanto a Napster oferecia a possibilidade de ouvir música de uma forma gratuita, a Skype oferece a possibilidade de fazer chamadas telefónicas sem pagar. Ao contrário de Napster, porém, a Skype tem uma base legal sólida. O modelo da Skype, tal como anteriormente o da Napster, assenta em tecnologia peer-to-peer redes informais de computadores pessoais interligados por conexões de banda larga, via Internet, que permitem a circulação de conteúdos digitais, sejam eles ficheiros musicais ou ficheiros de voz. Enquanto chamadas de voz entre utilizadores de Skype são grátis, chamadas entre utilizadores de Skype e não utilizadores importam um custo, pois utilizam as linhas telefónicas dos operadores incumbentes. Para aderir basta instalar o software num computador pessoal ligado em banda larga à Internet e com sistema operativo Windows. Para já, os utilizadores são maioritariamente empresas, mais sensíveis ao argumento de redução de custos. No entanto, os fundadores da Skype acreditam que no futuro todas as chamadas fixas irão migrar para a Internet e serão suportadas inteiramente por software, dispensando a necessidade de infra-estrutura dedicada como acontece actualmente. As telecomunicações fixas serão um serviço de Internet inteiramente gratuito, tal como é hoje o e-mail e os web-browsers . Se este visionários têm razão, as grandes empresas de telecomunicações fixas irão pelo mesmo caminho de definhamento que as suas congéneres do sector discográfico foram na última década e que a produção têxtil de base domiciliária foi há 300 anos.

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