A decana de Coimbra

(Última edição: sábado, 16 de abril de 2005 às 12:16)
A decana de Coimbra
Expresso 16.04.2005

Aos 106 anos, Maria Virgínia é a mais antiga aluna viva da Universidade de Coimbra, onde ingressou em 1917 em Físico-Química. Fundou a primeira república feminina da cidade e lembra-se bem de Salazar a tirar-lhe «chapeladas» de galanteio


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Tive uma vida fora do vulgar. Tão extraordinária... A entoação, aristocrática, pausada, correctíssima, parece saída de uma peça de teatro de época. Maria Virgínia, que há duas semanas completou 106 anos, nasceu em 1899, no Porto, onde o pai, João Ferreira de Almeida, cursava Medicina. A mãe, Beatriz Laura, deu-a à luz em casa, na Rua da Cedofeita, na exacta morada onde outrora vivera Carolina Michaëlis, a primeira mulher a leccionar numa universidade portuguesa. E mandou o acaso que Virgínia lhe seguisse o pioneirismo. Em 1917, num Portugal 70% analfabeto, matricula-se na Universidade de Coimbra (UC) no curso de Físico-Química - é hoje a mais antiga aluna viva deste estabelecimento de ensino. Três anos depois funda, com duas colegas, a primeira Casa Independente de Raparigas, vulgo república feminina, da cidade estudantil.

«Perdoe se já não recordo tudo, a minha memória está fraquinha», desculpa-se em antecipação a anciã, desfazendo-se num risinho bem-disposto. Maria Virgínia mantém uma vivacidade inesperada para quem já conheceu três séculos. O ouvido foi sumindo mas a voz permanece firme. Quase tanto quanto as pernas, que se agitam pela sala quando decide mostrar que ainda sabe dançar um minuete, atrapalhada pelas pantufas pouco propensas a bailes. Sobe e desce as escadas, senta-se e levanta-se com agilidade, tanto mostra como toca violão como se exibe ao piano, ao mesmo tempo que canta modas tradicionais, aprendidas na mocidade.

Vive sozinha, orgulhosa na sua semi-independência apoiada em duas empregadas - uma de dia, outra à noite - e nos filhos que a acarinham como porcelana fina. É Virgínia quem atende o telefone em casa e nunca precisou de usar o 112 preso a fita-cola no portátil, que guarda junto a si. Ao seu lado reside também o álbum fotográfico, que conhece de cor. Puxa-o para ela, folheia-o e pára a admirar um retrato de família, que o tempo tornou sépia. «É este o meu pai. Foi ele que me deu uma mocidade tão especial.»

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1921 - Virgínia com as colegas Olívia Antunes e Teresa Basto no Laboratório de Física da Universidade de Coimbra
 
O dedo aponta um homem alto, altivo, de farfalhuda pêra e bigode e chapéu de feltro. Acabado o curso, João Ferreira de Almeida abandona a Invicta e monta consultório e residência em São Pedro do Sul. Torna-se médico de província, que acode aos enfermos a trote de cavalo. Mais tarde, ascende a Governador Civil de Viseu (de conhecida ideologia republicana), dirigente do jornal «Povo da Beira» e director das termas locais.

É ele a figura tutelar de Maria Virgínia, que perde a mãe aos cinco anos. A orfandade materna desencadeia uma infância de carinho exacerbado - a ela e à irmã Maria Helena -, quer das tias por dever familiar quer das senhoras da sociedade local por interesse casamenteiro no viúvo. «Convivíamos com a fina flor da nobreza beirã», recorda, com uma saudade suspirada dos passeios de «landau» - carruagem com duas capotas de abrir -, puxado a cavalos, conduzido pela baronesa de Palme. Ou das partidas de ténis, em que a elasticidade dos passes era comprometida pelos vestidos compridos. Ou dos banhos no Vouga, tomados longe de olhares indiscretos numa casota de madeira no meio do rio.

Mas aos 18 anos disse ao pai que queria mais. Mais do que o piano, a arte de bem cavalgar, os dotes de sociedade, o francês irrepreensível, queria ir aprender inglês para Londres, onde vivia uma tia. Os estudos eram o escape «para fugir da chateza de mesmice daquela terra pequena». O liceu já fora feito em Viseu, no edifício que alberga hoje o Museu Grão Vasco. O progenitor, que a queria por perto, acenou-lhe com a Universidade de Coimbra. Ela concordou e escolheu Medicina. Ele recusou novamente «porque não era bom para uma mulher que quer casar e ter filhos lidar com doenças», recorda Virgínia. «Então optei por Físico-Química, porque tinha laboratório, não era só teoria. Em São Pedro, não me lembro de outra rapariga que tenha ido para o ensino superior».

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Aos sete anos, com a irmã Maria Helena
 
Não admira. Em 1917, ano de ingresso da portuense na UC, apenas ali estudavam 70 mulheres - em 1.198 inscritos - e só mais dez tinham optado por «sciencias», entre as quais Maria Guardiola, que seria uma das três primeiras deputadas da Assembleia Nacional. Foi o ano das aparições de Fátima, Portugal mergulhara numa crise económica, escasseava o pão e o carvão. Começara a revolução russa, a Finlândia tornara-se independente, nasceram John F. Kennedy e Indira Gandhi, morreram Mata Hari e Rodin.

Em Coimbra, Maria Virgínia partilhava o curso e a casa de caloira - a Casa das Cruzes, nos Palácios Confusos - com Maria Teresa Basto, companheira de Viseu. Passava horas no último andar, onde a janela lhe abria a vista sobre o Mondego. António Salazar, que nesse ano tinha começado a leccionar na Universidade, como assistente de Ciências Económicas, morava perto, na Rua dos Grilos, numa casa partilhada em regime de «república» com o padre - mais tarde cardeal - Cerejeira. «Lembro-me bem quando estava à janela e o Salazar passava. Ele atirava-me cada chapelada. Ai que graça! Depois ficou célebre...», recorda Virgínia num riso envergonhado. Foi fruto desse conhecimento «fenestral» que, ao partir para Lisboa, o professor lhe pediu que guardasse a mobília de jantar. «Eu disse que sim. E aproveitei-me bem. Mais que uma vez lá ofereci jantares a amigos.»

O curso de Físico-Química revelou-se difícil. Ao longo de sete anos - cinco de currículo e dois de Escola Normal Superior, para aceder ao magistério secundário -, cadeiras como Desenho de Máquinas, Cálculo Diferencial ou Cristalografia obrigaram Maria Virgínia a decorar fórmulas sem conta dizendo-as bem alto, repetidamente, enquanto caminhava em pêndulo pela casa. Todos os anos havia novos achados: a Teoria da Relatividade Geral de Einstein e a descoberta da Estrutura Molecular ocorreram pouco antes da sua chegada a Coimbra. «Mas licenciei-me com altos valores: 16!»

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Com a família paterna (o pai é o primeiro da direita)
 
Na universidade, as mulheres eram tratadas por «vossa excelência» e «senhora dona». «Os rapazes iam para ao pé de nós conversar, mas sempre com muito respeito. Éramos novinhas mas era como se fossemos já velhinhas», explica a anciã. Mas nas ruas, quando as avistavam, os mancebos gritavam de janela em janela «venham vê-las passar!», com promessas de rosas e violetas. «Éramos poucas e bonitinhas...» As mulheres não participavam nas actividades da Associação Académica nem entravam na sede. Tinham pasta de fitas, mas não vestiam capa e batina. A primeira Queima das Fitas ocorreu em 1919, andava ela no 2º ano, mas só se lembra de assistir. Respeitosamente.

A 20 de Janeiro de 1920, porém, decide imiscuir-se num universo até então só masculino. Com Maria Teresa Basto, Dionísia Camões e Elisa Vilares funda a primeira Casa Independente de Raparigas de Coimbra, no nº 28 dos Palácios Confusos. A «república» tinha regras: não era permitida a entrada a homens, a não ser acompanhados de uma senhora; era mantido um diário com a colaboração de todas - que está ainda à guarda da família; e era dever das habitantes fundar uma organização católica para estudantes universitárias - o Círculo Académico Feminino Católico.

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Durante a pausa de um jogo de ténis
 
Acabado o curso, Maria Virgínia foi para professora, colocada durante um ano no Liceu Maria Amália, em Lisboa. Rumou depois ao Liceu Infanta D. Maria, em Coimbra, onde ficou até se reformar aos 75 anos. Leccionou Físico-Química, Zoologia, Mineralogia, Botânica e até Trabalhos Manuais. Teolinda Gersão esteve entre as suas «alunas encantadoras», primeiro nas manualidades, depois a Química. «Pôs-nos a fazer coisas que nos pareciam impossíveis, desde pastas para documentos, em cartão, a caixas para bolos, em papel, iguais às que os empregados faziam na Central e no Nicola. E pôs-nos a escrever cartas para delegações de turismo e câmaras municipais, pedindo postais sobre castelos, que nos mandava reproduzir em barro, como se fosse a coisa mais óbvia e natural do mundo. Lembro-me que me calhou o castelo de Leiria, o que me deixou atordoada. Para ela não havia dificuldades, e passava-nos a mensagem de que para nós também não podia haver», recorda a escritora. «E lembro-me de a ver no laboratório sem vestir a bata, com um casaco de felpuda gola de pele e de olharmos, suspensas, não para a experiência mas para ver se a gola de pele se incendiava na lamparina».

Aos 32 anos, Maria Virgínia casa com o capitão Ernesto Pestana, comandante do Quartel de Santa Clara, mais tarde Governador Civil de Coimbra. Antes fora alferes de artilharia no Corpo Expedicionário Português, que participou na I Guerra Mundial. Foi dos poucos que voltou para contar o horror da batalha de La Lys, que vitimou 327 oficiais e 7.098 praças. O gás mostarda usado pelos alemães fragilizou-lhe para sempre a saúde.

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Em sua casa, ao piano
 
O militar conheceu Virgínia ao ouvi-la cantar na Sé Velha e na Igreja de Santa Cruz e dela se tornou admirador. No dia em que recebeu o sim nupcial, mandou-a ir para a janela à noite e olhar na direcção do quartel de Santa Clara. Por ela mandou colocar um soldado em cada janela com uma luminária e a homenagem viu-se em toda a Coimbra. Tiveram seis filhos, o último já tinha Virgínia 47 anos. Amamentou-os todos um ano e como a licença de parto era de apenas um mês, a criada levava-lhe o bebé à escola para a sessão alimentícia.

Dos tempos em que o marido foi Governador Civil, Virgínia recorda as festas. «Quando veio cá a Princesa Margarida, em 1959, fomos a um almoço no Estoril. Fiquei ao lado do Champalimaud. Que antipático!» Na recepção ao Presidente do Brasil, Café Filho, Salazar reconheceu-a e fez questão de ir cumprimentá-la.

Da vida ficou-lhe a pena pelas viagens que não fez. Para compensar, a filha mais nova, Maria Aldegundes, já a levou consigo a Londres e à Grécia, com a provecta idade de 80 anos. Qualquer passeio de carro lhe põe a rir os olhos. Nunca se habituou a ver partir todos os que conheceu. No momento é um choque, que depois aceita com naturalidade.

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Em sua casa, em Coimbra, com a filha Ana, de 70 anos,e três dos onze bisnetos que já tem. Os netos são 13
 
Da mesma forma que passou por inúmeras rupturas históricas - o advento da República, as duas guerras mundiais, a ditadura, o 25 de Abril - sem permitir que estas deixassem marcas na sua memória. Em 1974 porém, vendo a revolução na rua, apanhou um autocarro e foi assistir a um comício do PCP para perceber o que era a Liberdade. Tinha 75 anos. Hoje, atribui a sua longevidade ao optimismo que sempre cultivou, à relativização dos problemas, aos muitos quilómetros andados a pé e à dieta. Há 20 anos que apenas come sopa, fruta e leite. Não tem colesterol e a custo a convenceram a tomar um remédio para a irrigação cerebral. Prefere pedir fotos às pessoas que conhece, escrevendo nas costas o nome respectivo em letrinha elaborada. «E assim construo a memória de todos os dias.»
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Com as colegas de Coimbra
 
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ARQUIVO UNIVERSIDADE DE COIMBRA
 
O diploma que atesta a licenciatura de Maria Virgínia em Físico-Química, em 1922
 


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No rio Vouga
 
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Em 1916, finalista do Liceu de Viseu
 


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Namoro à beira-rio: Virgínia com o noivo, Ernesto Pestana, e as futuras sogra e cunhada
 
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Em 1933, com o primogénito, Nuno
 


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Ernesto, em 1917, na I Guerra Mundial
 
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Texto de Raquel Moleiro
Fotografias actuais de Ana Baião

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