(Última edición: sábado, 16 de abril de 2005, 12:27)
Expresso 16.04.2005
O que a vida me ensinou, José Manuel de Mello
Empresário, 78 anos
Nasceu
rico e em pequeno queria ser «playboy». Retirado da vida activa
empresarial, dedica-se à produção de vinho no Alentejo. Na memória de
muitos continua a ser o patrão da CUF ou da Lisnave, embora os seus
interesses estejam, agora, na Brisa e nas clínicas de saúde.Portugal
incomoda-o.Um debate na Assembleia da República deixa-o mal disposto,
Quando assim é, pega num avião e sai, a ver se refresca
Alterar tamanho
LUIZ CARVALHO
No 25 de Abril não fui derrotado, fui confiscado. Tomei
conhecimento do que se estava a passar à noite, quando começou o
«Grândola, Vila Morena». Passei dois dias no escritório a tentar criar
núcleos de resistência no meio empresarial, ainda com a esperança que a
coisa não acabasse da forma tão ordinária como acabou. Reuni muita
gente. Não tinha ilusões de que o Partido Comunista, mas não só, estava
a aproveitar-se e estava por trás de tudo quanto se tinha passado.
Vivemos horas e horas com outros empresários a ver se criávamos uma
coesão para fazer frente, ou para resistir, ou para encaminhar noutro
sentido. Em certa medida isso foi conseguido. Não quero dizer que a CIP
tenha nascido destas reuniões, mas tiveram muita influência.
Senti que era um mundo que acabava e um mundo que começava. Daí a
minha desilusão quando digo que nunca imaginei que a coisa fosse tão
ordinária. Quando digo ordinária, quero dizer com falta de categoria,
má qualidade como acabou por ser, com toda a manipulação que houve,
nitidamente destrutiva. Faz-me impressão ver pessoas, algumas altamente
colocadas na hierarquia do Estado, e que desde essa data fazem parte do
sistema. O sistema continua a existir e todos se autoprotegem. Até
varrem da memória aquilo em que estiveram envolvidos e hoje aparecem a
dar lições e conselhos.
Depois do 25 de Abril fui para o estrangeiro com uma equipa para
continuar a trabalhar, sujeitos aos mesmos sacrifícios de não saber se
conseguíamos realizar o fim do mês para comer o pão. Pus a minha
família na Suíça, junto de amigos. Não tinha dinheiro para lhes dar a
educação... mas, enfim, isso tudo já lá vai. O ódio é uma coisa que não
move nada. Não faz nada de construtivo. Quando olho para o Parlamento,
uma das coisas que me impressiona é a aparência de ódio e inveja que
surgem ali. Acho que o amor constrói tudo.
LUIZ CARVALHO
Sou firmemente crédulo na democracia. Sempre fui. Desde
muito novo que andei por fora. Vivi muito. Viajei muito. Comecei a
minha vida profissional como funcionário da CUF a vender adubos no
Médio Oriente. Estive instalado perto de um ano em Chipre e andava
muito pelo Norte da Europa. Depois comecei a ocupar-me da navegação.
Tinha uma visão do que era a vida nas democracias estabilizadas do
Norte da Europa. Para mim, essa vivência era natural, era intrínseca.
Levava-me a concluir que a realidade portuguesa era uma realidade a
prazo. Não tinha dúvidas nenhumas sobre isso. Tive a esperança, por
ingenuidade, por credulidade, que adviria uma evolução no sentido de
nos aproximarmos das regras do Norte da Europa. Pensava numa transição
suave. Nunca achei que as revoluções resolvam seja o que for. Às vezes
são necessárias, mas sempre pensei que houvesse inteligência bastante
para fazer uma evolução.
Não me sinto particularmente orgulhoso de um dia, no Brasil, depois
do 25 de Abril, ter virado a cara a Marcello Caetano, quando ele
apareceu no mesmo restaurante onde eu estava. Veio para me falar e eu
virei a cara. Arrependi-me de ter feito isso. Na altura culpabilizava-o
muito de ter permitido que as coisas chegassem ao ponto de justificarem
a parte rasca do 25 de Abril. Tive grandes esperanças quando Marcello
Caetano foi para o Governo. Cheguei a manifestar-lhe essas esperanças,
mas também a minha desilusão. Não sei se na altura em que ele chegou ao
poder ainda era possível fazer diferente, mas achava que ele devia
tê-lo feito. O problema colonial estava posto em cima da mesa. O livro
de Spínola foi publicado por uma editora que estava no meu grupo, mas
não sei se foi a parte mais positiva, ou que contribuiu para alguma
coisa. Até pelo posterior comportamento de Spínola.
Gosto de viajar. Gosto principalmente de sair deste ambiente
asfixiante que acho que é o do meu país, por provincianismo, por falta
de objectividade. Acho que o português é o mais provinciano que há.
Somos periféricos. O português é essencialmente pouco evoluído. Vive
longe da realidade. Tem uma posição quase de espectador permanente.
Mesmo todas as ligações com o mar, que é um dos meios de comunicação
mais antigos, não tiveram em nós grande influência. Somos burgessos.
Somos pequeninos. Temos uma atitude meio saloia. Sinto-me incomodado
com o país. Basta assistir a uma sessão da Assembleia da República.
Fico mal disposto durante oito dias. A primeira coisa que faço é pegar
num avião e sair daqui, para ver se refresco. Porque aquilo é tudo
menos um parlamento como devia ser. Incomoda-me a falta de nível, a
forma como são discutidos os problemas, onde se debate tudo, menos o
essencial. Quanto aos governos, também não temos um grande currículo
nos últimos tempos. Desde o Cavaco Silva, que não fugiu, a partir daí
nunca mais houve nenhum primeiro-ministro que não tivesse fugido, ou
que tivesse acabado o seu mandato. O Cavaco Silva não terá fugido, mas
lá que não pretendeu continuar, isso sem dúvida nenhuma.
Custam-me estes processos da Casa Pia, que se prolongam. Custam-me
os noticiários, onde a parte essencial não é transmitida. Custa-me a
queda da ponte de Entre-os-rios. Ninguém sabe quem é o culpado, mas
houve vítimas. Custa-me passar pelo Terreiro do Paço e ver uma obra que
não sei se está a fazer-se ou não, e quem é que decidiu. Custam-me
estas guerras do túnel do Marquês. E ninguém põe nada em causa. Então,
o país? E nós? Estamos a sofrer com isto, lá porque falta o relatório,
ou falta a vírgula.
O AR DE PORTUGAL É ATERRORIZADOR
É raro passar um mês seguido em Portugal. Gosto de ir para Londres
ou para os EUA. Também gosto de ir a Espanha. O que me atrai na ideia
de viajar é o que se respira de ar diferente. Acho que este ar aqui é
aterrorizador. Não percebo a capitalização da desgraça que se faz na
televisão, cujos noticiários demoram quase uma hora. Não acabam,
sequer, com uma história engraçada, positiva, como a televisão inglesa.
A louca procura das audiências faz sempre repisar o negativo. Não é que
ache que o negativo não deva ser posto ao de cima, para estarmos todos
conscientes, mas tudo tem limites.
A minha primeira grande viagem foi a acompanhar o meu pai, mal tinha
acabado a II Guerra Mundial, quando ele foi tratar de reequipar a CUF.
Durante o período da guerra tinha sido impossível renovar o equipamento
das fábricas e os navios estavam velhos. Lembro-me de chegar a Paris e
ver senhas de racionamento, que era uma coisa que aqui não se conhecia.
Recordo-me de ver Londres destruída. Em Bruxelas e em toda a parte da
Bélgica vi as pessoas com fome. Aqui nunca imaginámos essas coisas. A
minha família nunca foi profundamente germanófila, embora tivesse um
bocadinho o estigma da Guerra Civil de Espanha, em que se envolveu. O
meu avô ajudou de várias formas o lado nacionalista, que acabaria por
sair vencedor. Em minha casa fizeram-se muitas camisolas para levar a
Espanha. O meu pai tinha a carta de pesados e foi em comboios a guiar o
camião para levar produtos. O meu avô e a minha família sempre foram
gente que acreditaram na autoridade e na ordem. A opinião que corria lá
em casa era essa. Mas não se pode deixar de contextualizar isto no
tempo em que foi. Impressiona-me esta necessidade de pedir desculpa,
como o Papa veio pedir desculpa, ou o Presidente Chissano, que já não é
presidente, mas que foi ao Norte e disse que falta aos portugueses
pedirem desculpa. Pedirem desculpa de quê? Foi um contexto. Foi uma
época, e nessa época era como era. Não éramos diferentes dos outros.
Que se capitalize hoje isso por razões políticas ou outras, é um
completo exagero.
Os meus pais eram pouco autoritários. Talvez mais disciplinadores. A
minha mãe, filha única de Alfredo da Silva, era de formação e educação
muito germânica. Tinha um grande respeito pela vida empresarial do pai
e incutia-nos essa visão de que o que valia era o trabalho que se fazia
nas empresas. Acima de tudo importava o trabalho, criar empresas, criar
iniciativas. Mais tarde o meu pai sucedeu ao meu avô e também seguiu a
mesma linha, de uma formação de que o que vale é o trabalho e criar
riqueza. Para além de, na maioria dos casos, ser a forma de sustentação
da família. O trabalho é próprio do homem, o homem que não trabalha não
pode ser feliz. Trabalhar é quase tão importante como lavar os dentes e
fazer a barba.
Em pequeno, eu dizia que quando fosse grande queria ser «playboy».
Sempre gostei de fazer desporto, de andar à vela. Era rico, já tinha
herdado, e sempre pensei em comprar um barco à vela para dar a volta ao
Mundo. Quando a minha mãe me chamou à realidade, me informou que o meu
pai estava gravemente doente e lhe respondi que estava a pensar ir,
durante um ano, dar a volta ao Mundo, ela disse-me para nem pensar
nisso. A minha obrigação era trabalhar nas empresas que o meu avô tinha
criado e o meu pai continuado. Assim foi. Já tinha sinalizado o barco.
Foi o sinal à viola e agarrei-me à rabiça. Já nem penso nisso de dar a
volta ao Mundo.
TENHO MENOS CERTEZAS E MAIS DÚVIDAS
Quando a minha mãe me confrontou com aquele desafio, não tinha
remédio. Não tinha alternativa. Se estava preparado, ou não, era aquilo
que tinha de fazer. Preparei-me. Mudei de perspectiva.
Subconscientemente estava convencido de que era esse o meu caminho.
Não posso dizer que o dinheiro não seja importantíssimo, mas não é
isso que me move. Nasci num berço de oiro e por isso sempre tive
dinheiro. Em todo o caso, depois do 25 de Abril passei por muitos maus
bocados, durante um ano ou dois. Soube adaptar-me a viver «à rasca»
para chegar ao fim do mês. O dinheiro é importantíssimo para quem não o
tem, por isso é quase uma barbaridade estar a dizer uma coisa destas.
A vida ensinou-me que não sei nada. Cada vez tenho menos certezas e
cada vez tenho mais dúvidas. Mas acho que a vida vale a pena ser
vivida. Acredito muito no evangelho dos talentos. Quem os tem, tem a
obrigação de os fazer render.