O mestre dos silêncios, Miguel Sousa Tavares

(Modifié le: samedi 5 novembre 2005, 07:32)
O mestre dos silêncios, Público, 4 Nov 2005

Mário Soares como ele
próprio não se cansa de
recordar, a título de prova
de vida passou estes dez
últimos anos sem resguardo algum: fez
uma fundação, foi deputado europeu,
publicou dez livros (!), viajou, fez conferências,
palestras, presidiu a comissões,
desfilou contra a Guerra do Iraque.
Puf! suspira Cavaco Silva, com desdém,
ao relembrar as andanças do seu rival
, um político profissional no seu pior!
Ele, Cavaco, fez o inverso: tratou de acabar
a sua vida académica tranquilamente, publicou
um livro, após sair do governo e onde
inventariou as reformas de uma década,
que jura ter feito, mas que, curiosamente,
são hoje universalmente reconhecidas
como as mais urgentes ainda por fazer, e
reservou-se para ocasionais aparições públicas,
sempre devidamente publicitadas
pelos inúmeros homens-de-mão que deixou
semeados pela imprensa e sempre recebidas
pela pátria como verdadeiros textos de
referência, senão mesmo de culto.
Soares falou tanto nestes dez anos que
não nos lembramos de coisa alguma marcante
que tenha dito. Cavaco falou tão pouco
que, para a história, ficou apenas aquela
frase dos tempos de governação de Santana
Lopes de que a boa moeda deve afastar a
má. Foi um pensamento profundo e corajoso:
antes dele, ninguém ainda tinha
pensado numa coisa dessas e
ninguém ainda se tinha atrevido
a questionar os méritos
governativos de Santana Lopes
e do seu extraordinário séquito.
Disse também outra coisa (hoje
convenientemente apagada dos
registos pelos seus fiéis), estava
a sua amiga Manuela Ferreira
Leite a tentar controlar o despesismo
público e os défices
suicidários do Estado: disse que
o que era preciso eram políticas
keynesianas, de contraciclo e
acrescidas despesas públicas.
Há dez anos que todos sabíamos
que Cavaco voltaria
a candidatar-se à Presidência
da República, assim que Jorge
Sampaio desimpedisse o
caminho porque, tirando
o inevitável holocausto de 95,
contra o mesmo Sampaio, e a
que não tinha maneira de se
furtar, ele sempre foi homem
dos combates com vitória
assegurada à partida. Este
seu novo e ridículo tabu com
as presidenciais, este patético
arrastamento da notícia formal
da candidatura, quando já tudo
estava pensado ao pormenor e ele ainda
fingia estar em reflexão, só serviu para
demonstrar duas coisas: uma, que Cavaco
conhece e usa todos os truques da política,
que afecta desdenhar; outro, que entre os
seus truques preferidos está a gestão do
silêncio, até ao limite do possível.
Não há lugar mais político do que a
Presidência da República. É um lugar destinado
exclusivamente a fazer política, não
a governar ou a fazer obra. É por isso que
a candidatura de Cavaco Silva gera tanto
desconforto, tanta desconfiança e tanta
insegurança em tanta gente: porque quem
se candidata ao cargo se afirma, pessoal e
estruturalmente, contra a própria natureza
dele e, por conseguinte, nos deixa a tentar
adivinhar que agenda secreta será a sua,
uma vez na Presidência.
Sempre foi assim, também, nos seus dez
anos de governo. Cavaco Silva sempre desprezou
as ideias políticas, o debate, a ideologia,
a agenda, a definição de um horizonte
ou de um projecto para Portugal. Quando
questionado, respondia com os 1400 quilómetros
de estradas novas, os 210.000 carros
comprados, as 600.000 criancinhas nascidas
durante os seus anos de esplendor. Nunca
aceitou debates, nunca perdeu tempo com
o Parlamento, nunca se submeteu a entrevistas
difíceis. Quando precisava de cuidar
da imagem ou da mensagem, reservava-se
para entrevistas exclusivas na televisão pública
com o seu conselheiro de imagem ou
com a sua adida de imprensa. Assim criou
o mito do homem infalível, demasiado ocupado
a resolver os problemas do país para
se desgastar em explicações avulsas ou na
inútil encenação democrática.

Para essas tarefas menores, Cavaco
contou sempre com um fiel exército de
guardas da revolução, que hoje reemergem
outra vez à superfície, tal como,
diga-se em abono da verdade, reemergem
os cortesãos de Soares. Uma das especialidades
de Cavaco Silva foi sempre a de dar
homens por si. Se Cavaco nunca teve uma
ideologia nem sentiu necessidade de a ter,
o cavaquismo teve-a.
Para quem já esqueceu ou finge ter
esquecido, convém relembrar o que era a
substância intelectual e política do cavaquismo.
O mesmo Cavaco Silva que hoje
se afirma contra a partidarização do aparelho
do Estado, foi o primeiro-ministro que
inaugurou a moda recente de distribuir
todos os cargos públicos (excepto os das
forças de bloqueio, que se lamentava
de não conseguir controlar) pelos fiéis
do partido e do chefe, enquanto ele, como
escreveu o seu fiel António Pinto Leite,
afectava dedicar-se unicamente ao culto
solitário e obsessivo do interesse nacional.
Enquanto o próprio Cavaco Silva se
vangloriava de ter devolvido Portugal ao
mundo e se gabava de ter feito de Portugal
um oásis de progresso no meio da decadência
do mundo, os seus fiéis ocupavam,
sem pudor nem temor, todos e cada um dos
cargos do Estado, das empresas públicas,
das sinecuras regionais. Na RTP, totalmente
governamentalizada, Roberto Leal,
vestido de minhoca branca, pulava e saltava,
cantando o refrão nós já temos Cavaco
e maioria antes mesmo das eleições.
E o ministro Fernando Nogueira, então
número dois e delfim do cavaquismo,
explicava candidamente que não havia
ocupação alguma do aparelho de Estado,
já que ele não conhecia um génio, uma
pessoa invulgarmente dotada, que não
esteja ocupada. Ele, por exemplo, estava
apenas muito empenhado em dar a sua
contribuição individual para um projecto
colectivo protagonizado pelo Professor
Cavaco Silva... numa unidade ideológica
que causa inveja aos adversários. Porque
tudo se resumia a essa tarefa patriótica
da unidade ideológica e serviço ao chefe,
como ensinava aos deputados do PSD o
líder parlamentar da maioria de então,
Montalvão Machado: Uma das prioridades
dos deputados sociais-democratas
deve ser a promoção da imagem de Cavaco
Silva. Eram os tempos, recordo, em que
o primeiro-ministro, Cavaco Silva, abria
o telejornal da RTP, então estação única e
pública, para declarar: Estou em condições
de dizer aos portugueses que o preço
da gasolina vai baixar quatro escudos por
litro. E eram os tempos, também, em que
o mesmo primeiro-ministro propunha
uma Lei do Segredo de Estado, felizmente
abandonada, em que os aumentos de
preço dos combustíveis, dos impostos,
das taxas de juro e outros rendimentos
do Estado, bem como a contracção de
empréstimos por parte da República
ou das Regiões Autónomas, passariam
a constituir matéria abrangida pelo segredo
de Estado. Assim ia a democracia,
nos gloriosos tempos de então.
E é por isso que, lembrando-me de coisas
de então, agora que, segundo as sondagens,
Cavaco Silva se prepara para ser meu Presidente
da República nos próximos dez anos,
eu acho que chegou a altura de lhe exigir
o fim do silêncio conveniente. Gostaria de
saber o que pensa ele de Portugal: da justiça,
da educação, da desordem territorial,
da reforma da administração pública,
da regionalização, do aborto, da Ota e do
TGV. E o que pensa do mundo: do Iraque, do
combate ao terrorismo, das relações com os
regimes corruptos de África, da imigração,
da adesão da Turquia à Europa, da deslocalização
de empresas, da futura guerra
contra o Irão. Numa palavra, gostaria de
saber que ideias tem ele, o não-político,
sobre a política. Será pedir de mais a quem
quer ser Presidente da República?

P.S. Nos tempos do Grande Ceausescu,
andava em reportagem pela Roménia
e pedi uma entrevista ao ministro
dos Estrangeiros. Responderam-me que
as perguntas só por escrito, previamente,
e as respostas só por escrito, posteriormente.
O mesmo sistema acaba agora de ser
instaurado na Câmara do Porto pelo dr.
Rui Rio. Gostavam muito da maneira de
fazer política dele, não gostavam? Pois
agora aprendam! ■ Jornalista

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