Os elementos fundamentais da cultura portugues, Jorge Dias
(Última edição: segunda, 7 novembro 2005, 12:58)
OS ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DA CULTURA PORTUGUESA
Jorge Dias
No estado actual dos nossos conhecimentos não é possível desenvolver
satisfatoriamente o tema que me foi designado neste Colóquio.
Estabelecer os elementos fundamentais duma cultura representa o fim
máximo a que a etnologia (antropologia cultural) se propõe; é, digamos,
a cúpula dum edifício que ainda está nos alicerces. A vastidão e a
complexidade do assunto não permitiram sequer que nestes escassos meses
se pudesse traçar uma visão panorâmica da cultura portuguesa com a
solidez científica indispensável. Pode dizer-se que tal tema é a tarefa
de toda a vida daqueles que se lhe dediquem. O mérito desta tentativa
não será mais do que quebrar o encanto de penetrar num mundo que a
todos atrai, mas onde ninguém ousa afoitamente entrar, pelos perigos
que encerra. São de molde a assustar qualquer um os juizos precipitados
ou superficiais, de sobejo conhecidos, emitidos por vários jongleurs do
espírito, que pretendem classificar um povo salientando só algumas
características, muitas vezes bem pouco típicas, que mais se poderiam
classificar anedóticas, quando não malevolentes.
Se definir os elementos culturais duma sociedade tribal demanda já
um longo trabalho de análise e boas qualidades de observação,
interpretação e síntese, o que não será estabelecer as bases culturais
permanentes dum povo estratificado e com oito séculos de história?
Aliás, não está mesmo demonstrada a permanência de características
através do tempo, nem que a tradição cultural apresente a estabilidade
rígida que muitos lhe atribuem. A herança cultural dum povo é
fatalmente afectada por influências do exterior (aculturações) e por
transformações de estrutura determinadas pela sua própria evolução'.
Além disso, todos nós conhecemos a diversidade cultural das várias
regiões naturais da nação portuguesa, agravada ainda pelas diferenças
culturais próprias dos estratos sociais que a formam.
Posto isto, pode parecer que o problema se apresenta sem
solução. É, contudo, indubitável que os vários povos mostram dife
renças sensíveis entre si, que, embora difíceis de definir, nos
garantem não ser em vão o esforço de o tentar. Creio mesmo que virá um
dia em que o progresso dos estudos etnológicos permitirá uma síntese
perfeita e cientificamente fundamentada do que é culturalmente
especifico do povo português. Mas para isso é necessário abandonar as
intuições mais ou menos brilhantes e os juizos superficiais ou
aprioristicos e seguir um caminho penoso de análises sucessivas e de
interpretações e sínteses parciais, até se poder alcançar esse fim
superior que todos nos propomos.
Perante a dificuldade deste tema, cheguei a pensar fugir-lhe,
limitando-me a apresentar aqui um método de estudo da
personalidade-base e dos elementos fundamentais da cultura portuguesa.
Era mais fácil, e seria talvez mais útil, começar por indicar o caminho
que a investigação devia seguir perante a heterogeneidade cultural que
se verifica no espaço (sincrónica) e no tempo (diacrónica), complicada
ainda pela heterogeneidade vertical dos vários estratos sociais. Porém,
embora venha em breve a publicar esse tentame metodológico, não quero
iludir a dificuldade e vou-me esforçar por estabelecer, pelo menos,
alguns dos elementos fundamentais da cultura portuguesa.
Quando nos referimos à cultura dum povo civilizado, formado por
um conjunto de áreas culturais distintas e de classes estratificadas,
não nos podemos necessariamente deter nas formas e instituições, e
temos antes de lhe procurar o conteúdo espiritual. Só ele deixa
compreender a evolução cultural do povo, porque só esse conteúdo
espiritual pode ter carácter de permanência através das transformações
morfológicas e ideológicas que se vão sucedendo no tempo. A única
constante dum povo é o seu fundo temperamental, e não os múltiplos
aspectos que a cultura reveste, porque é ele que os selecciona e
transforma de acordo com a sua sensibilidade específica. Porém, nem
sempre existe uma constante temperamental-base nas nações de composição
heterogénea. Às vezes não há mais do que várias mentalidades em
conflito real ou latente, que, com o decorrer da história, vão tomando
alternadamente a orientação do conjunto. Convém compreender como tal
fenómeno se passa, pois, muitas vezes, podem tomar-se como
características dum povo aspectos culturais duma só região. Também pode
suceder que tomemos por cultura nacional as características duma classe
que deixou de ser a expressão superior de todo o povo, para ser
simplesmente uma autocracia que impõe a esse povo normas de conduta e
cuja cultura não corresponde à personalidade-base da nação.
Há povos em que a homogeneidade das partes que os constituem e
a colaboração extensiva de indivíduos de todas as classes, por um
elevado nível de instrução geral, tornam particularmente fácil o estudo
da sua cultura. Estão neste caso, por exemplo, as nações escandinavas e
a Holanda. Noutros casos, as diferenças regionais muito acentuadas
impediram ou dificultaram a unificação, que só se fez tardiamente ou
por imposição mais ou menos forçada duma dessas regiões sobre as
outras. São estes, por exemplo, os casos da Itália e da Alemanha, onde
ainda hoje se mantêm dialectos e formas de cultura superior que são
simplesmente regionais. De qualquer maneira, a unificação das nações
com regiões culturais heterogéneas tem de se apoiar num poderoso
elemento polarizador das energias nacionais. A maior parte das vezes
esse elemento é político e resulta da imposição, mais ou menos
violenta, dos padrões de cultura duma província às outras que com ela
formam um conjunto nacional. Na Alemanha foi a Prússia e em Espanha
Castela que desempenharam esse papel unificador. Portugal, porém,
apresenta uma curiosa particularidade de unificação. Embora a origem da
Nação se deva também à política, à vontade dum príncipe, que
naturalmente se aproveitou de certas aspirações de independência
latentes nas populações de Entre Douro e Minho, a unificação e a
permanência da Nação deve-se ao mar. Foi a grande força atractiva do
Atlântico que amontoou no litoral a maior densidade da população
portuguesa do Norte, criando como que um vácuo para o interior. Desde
Caminha a Lisboa estabeleceram-se inúmeras amarras que defenderam
Portugal da força centrípeta de Castela. Mas foi sobretudo o estuário
do Tejo, esse forte abraço do mar com a terra, que definitivamente
presidiu aos destinos de Portugal. Não houve o domínio duma região
sobre outras, antes se encontraram todas num ponto natural de
convergência. É por isso que, ao contrário de Berlim ou de Madrid,
capitais no centro das regiões dominadoras, Lisboa, na foz do Tejo,
está mais apoiada no mar do que na terra. Além disso, Lisboa pode
dizer-se formada por habitantes oriundos de todas as provincias do
País, quase que sem predomínio de qualquer delas. A este facto deve
Portugal certa homogeneidade cultural permanente. Contudo, não devemos
esquecer que, a par da cultura nacional, existem ainda hoje regiões
naturais muito definidas, com culturas próprias bem caracterizadas,
fruto, não só de condições ambientais diferentes, como de ascendência
cultural e possivelmente étnica diversas'. Convém recordar que muitas
características atribuídas aos Portugueses não passam de meros aspectos
culturais duma só região. Se existe uma cultura com longa tradição,
também é certo que são poucos os que nela participam, pois, por razões
de educação e instrução, a maior parte da população recebe sobretudo a
cultura tradicional da sua região.
A cultura nacional é um curioso fenómeno do espírito colectivo
e resulta da combinação de muitos elementos. No momento em que na
combinação entrem elementos novos, ou faltem outros, o composto que daí
resulta já não pode ser o mesmo. Passa-se isto quase como num composto
químico formado de elementos simples. O resultado não é a soma de todos
eles, mas um corpo novo, com características próprias. Quer isto dizer
que, se a cultura de um povo encerra em si, transformados, todos os
elementos que a constituem (culturas locais), nem por isso esses
elementos, tomados separadamente, permitem compreender o conjunto.
Igualmente a perda de uma das partes ou a anexação de uma parcela nova
acaba por afectar, com o tempo, as características da cultura nacional.
No caso especial português, a cultura superior não é também um
somatório das diferentes culturas regionais, mas uma integração destas,
de que resultou uma coisa nova em que elas estão contidas, embora
transformadas por uma espécie de fenómeno de sublimação espiritual.
Enquanto a cultura local tem carácter quase ecológico e resulta do
conflito entre a vontade do homem, o ambiente e a tradição, a cultura
superior transpõe esse conflito para o plano espiritual, porque o
elemento ambiente natural é substituído pela história. Os factores
mesológicos continuam a actuar, mas de maneira menos visível e, em
parte, já contidos nas culturas regionais, que dão o seu contributo
para a cultura superior. É possivel que, se um dia o nível de instrução
e de educação for tão elevado que todo o povo participe mais
intimamente na cultura nacional, desapareçam as culturas regionais,
completamente absorvidas e sublimadas pelo espírito geral. Mas tal
hipótese não se pode verificar, por enquanto, e temos de proceder
cuidadosamente à análise das partes, sem cair no erro de as tomar pelo
todo. A tendência a generalizar é um perigo frequente. Em Portugal
muita gente julga os Espanhóis pelos centos de galegos que aí vivem e
trabalham. Contudo, esses espanhóis são quase todos da Galiza, uma das
provincias que mais se afastam da personalidade-base espanhola. É
possível que tal erro de apreciação se repita noutros países em relação
aos Portugueses. Os Brasileiros, os Americanos, os Franceses e os
Marroquinos devem ter dos Portugueses uma ideia que corresponde
principalmente ao Minhoto, ou ao Transmontano, ou ao Beirão, ou ao
Açoriano, ou ao Algarvio, etc., e não ao Português-base.
Se para os estudos dos elementos fundamentais da cultura
portuguesa tal distinção é menos importante, já se não dá o mesmo ao
querer estudar as aculturações portuguesas fora do País. Para tais
estudos convém conhecer em primeiro lugar as origens dessa colonização
e fazer a análise cuidadosa da cultura da região donde provieram os
colonizadores. Embora a Reconquista se tivesse feito do norte para o
sul, e muitos territórios fossem repovoados com gente do Norte, ou esta
se tivesse misturado em proporções várias com as populações existentes,
isso não impediu que se formassem regiões culturais distintas.
Contribuiu para isso não só o substrato cultural anterior, como a acção
dos agentes naturais, diferentes nas várias regiões. Se os factores
mesológicos são insuficientes para explicar os fenómenos culturais, nem
por isso podemos negar a sua acção profunda.
Como o carácter deste trabalho não permite entrar nos estudos
regionais - degraus necessários para quem quiser chegar ao cimo donde
se domina o conjunto -, teremos de abordar directamente a essência do
problema e deixar para outra ocasião esse importante assunto.
A cultura portuguesa tem carácter essencialmente expansivo,
determinado em parte por uma situação geográfica que lhe confe riu a
missão de estreitar os laços entre os continentes e os homens. Este
carácter expansivo tem raízes bem fundas no tempo, se quisermos lembrar
a cultura dolménica, que, segundo grandes autoridades, teve como centro
de difusão o litoral português nortenho'. Porém, a expansão portuguesa,
ao contrário da espanhola, é mais marítima e exploradora do que
conquistadora. Desde muito cedo existem notícias de navegadores
portugueses e, entre as medidas de fomento comercial-maritimo,
distingue-se a criação da bolsa de mercadores, que veio a ser a
primeira companhia de seguros marítimos mútuos (Companhia das Naus
[século XIV]) .
A força atractiva do Atlântico, esse grande mar povoado de
tempestades e de mistérios, foi a alma da Nação e foi com ele que se
escreveu a história de Portugal. Como disse um professor alemão, a
literatura portuguesa medieval já está cheia de motivos marítimos que
se podiam procurar em vão em qualquer outra literatura latina'. De
facto, antes de se empreenderem as grandes viagens oceânicas já o
motivo marítimo impressionava a sensibilidade portuguesa. Porém, só
mais tarde, depois de se ter levado a cabo a grande tarefa que a
história universal nos tinha destinado, é que a arte portuguesa atingiu
o seu máximo como glorificação das empresas marítimas. Os quatro
pilares do génio criador português: Os Lusíadas, os Jerónimos, o
Políptico de Nuno Gonçalves e os Tentos de Manuel Coelho, são quatro
formas de expressão, verdadeiramente superiores e originais, dum povo
que durante mais de um século esquadrinhou todos os mares e se extasiou
perante as naturezas mais variadas e exóticas.
Se a situação geográfica contribuiu indiscutivelmente para o
carácter expansivo da cultura portuguesa, ela só não basta para
explicar tudo. Além dela, temos de considerar a feição psíquica
portuguesa e a maneira como esta actuou perante as circunstâncias.
A personalidade psicossocial do povo português é complexa e
envolve antinomias profundas, que se podem talvez explicar pe las
diferentes tendências das populações que formaram o País. Da mesma
maneira que Portugal representa o ponto de encontro natural das linhas
de navegação entre a Europa, a África e a América, a sua população é
constituída pela fusão de elementos étnicos do Norte e do Sul. Apesar
da relativa homogeneidade da população actual, no Norte do País abundam
elementos da Europa Setentrional e Central (celtas e germanos),
enquanto no Sul predominam os elementos do Sul da Europa e do Norte de
África (mediterrâneos e berberes).
Situado no extremo sudoeste da Europa, a poucos passos da
África, o País estava destinado a ser ponto de passagem e de encontro
das mais variadas raças, umas vindas dos confins do Mediterrâneo, como
os Fenícios, que lhe demandaram os portos, outras cio extremo
setentrião, como os Normandos, que lhe invadiram as costas. Mas as
influências destes foram superficiais e só se fizeram sentir no
litoral. Foram mais importantes as invasões celtas, sobretudo a partir
do século VI a. C. Estes povos, senhores da técnica do ferro e da
superioridade militar e económica que daquela derivava, acabaram por se
fundir com a raça autóctone. Os Lusitanos, que resultaram desta fusão,
eram um povo rude, sóbrio e espantosamente resistente e aguerrido. Era
tal o amor da independência que os Romanos, quando quiseram conquistar
a Península Ibérica, viram fracassar umas atrás das outras as
tentativas para os dominar. Só ao fim de mais de um século, com a vinda
de Augusto à Península, foi possível a subjugação deste povo,
considerado um dos mais indómitos daquele tempo. Viriato ficou na
história como um dos grandes heróis lusitanos e as suas campanhas
chegaram a atingir o Norte de África, com a expedição de Kaukeno. Mas o
Império Romano acabou por dominar inteiramente e, durante uns séculos,
reinou a paz romana. Quando os povos germânicos, aproveitando-se da
fraqueza do velho império, começam a invadi-lo em bandos sucessivos,
modifica-se novamente a estrutura étnica e cultural das populações que
correspondem ao Portugal actual. Logo nos começos do século V os Suevos
distribuem terras entre si e se fixam na actual província de Entre
Douro e Minho. Estes povos, saídos poucos anos antes do coração da
Baviera, trouxeram com as mulheres e os filhos os usos e costumes e as
técnicas agrárias do seu pais'. A pouco e pouco fundem-se também com as
populações anteriores, formando um reino que tinha Braga por capital. O
reino dos Suevos não pode resistir às investidas dos Visigodos, seus
irmãos de sangue, mas mais práticos nas artes da guerra e da política.
Os Visigodos acabam por se assenhorear de toda a Península, durante o
século VI, formando um grande reino cristão. Porém, logo nos princípios
do século VIII, os Árabes, movidos por um vivo impulso religioso,
lançam-se na Península e conquistam-na com rapidez vertiginosa.
Todavia, à medida que ganham em extensão, vão perdendo em ímpeto e, ao
fim de alguns anos, o núcleo de resistência cristã, formado nas
Astúrias, começa a repelir o inimigo. Vão-se assim formando novos
reinos cristãos, entre os quais Portugal.
Portugal nasce desta luta contra os Mouros. É uma guerra
política e religiosa. Enquanto se reconquista o solo da Pátria
expulsa-se o inimigo da Fé. Atrás do conquistador vai logo o lavrador e
constrói-se o templo. A espada que luta precisa de se apoiar no pão dos
campos e na fé em Deus. Em 1249 acabava a luta porque não havia mais
terra a conquistar, tinha-se chegado ao extremo sul da faixa
portuguesa. Nesta ocasião já se tinha repovoado grande parte dos
territórios e, além de muitas capelas românicas, já se erguiam as Sés
de Braga, Porto, Coimbra, Lisboa e Évora. Era chegado o momento de ir
mais além. Não no espaço, que não havia, mas na organização interna do
País. Os reis que se seguem cuidam das letras, da justiça, e promovem
medidas de fomento agrícola e de alcance marítimo. Em 1290 fundam-se os
Estudos Gerais, o embrião da Universidade portuguesa. Nos fins do
século XIII Portugal já exportava cereais. Parecia que tinham terminado
as lutas e inquietações e que ia começar a vida próspera, pacifica e
apagada dum pequeno povo à beira-mar. Mas não; os vizinhos Espanhóis
começavam a cobiçar Portugal. Surgem novamente lutas e incertezas, que
terminam pela vitória decisiva dos portugueses em 1385, no campo de
Aljubarrota. Esta afirmação da força nacional parece ter despertado
novas energias, e surge a ideia de ir contra o antigo inimigo de tantos
séculos. Portugal já possuía então embarcações que lhe permitiam uma
expedição militar ao Norte de África e, em 1415, os Portugueses
conquistam Ceuta aos Mouros. Era o começo da fase de expansão marítima.
Em 1418-19 descobre-se a ilha da Madeira, a seguir os Açores, depois
vai-se explorando a costa africana com o propósito de chegar à índia
pelo mar, ao mesmo tempo que se mandam exploradores por terra. Desde
então, até aos nossos dias, toda a cultura portuguesa está impregnada
de influências marítimas e ultramarinas.
A história de Portugal teve um período extraordinariamente
glorioso, que definitivamente passou. Uma das nações mais pequenas da
Europa foi senhora de um dos maiores impérios de todos os tempos e teve
a maior armada da época. Embora Portugal ainda enfileire entre as
grandes nações com territórios ultramarinos, todos nós sabemos que os
destinos do mundo saíram há muito das suas mãos. A mesma sorte coube
ultimamente a nações consideradas colossosos invencíveis. A grandeza e
a decadência das nações tanto se devem à evolução íntima do seu povo
como ao jogo dos acontecimentos. Às vezes, o que foram virtudes numa
época podem ser defeitos noutra, e uma mutação de culturas pode alterar
inteiramente os destinos às nações. O próprio temperamento português
explica muitas das feições da sua história, mas há causas exteriores
que também nos dão a chave de culpas que lhe são injustamente
atribuídas. Se o carvão e o aço, que constituíram a base da última fase
da civilização ocidental, existissem no nosso subsolo, é natural que
tivéssemos desempenhado um papel bem diferente daquele a que fomos
obrigados. Mas um país que deu madeiras e pano para caravelas e foi
farto de pão para uma população de menos de 2 milhões de habitantes
pode não ter riquezas nem abundância para alimentar uma população que
cresce vertiginosamente.
Vamos agora tentar definir as constantes culturais deste povo,
já velho de tantos séculos, comparando as características culturais de
nossos dias com aquelas que a história nos fornece, em função da sua
personalidade-base.
O Português é um misto de sonhador e de homem de acção, ou,
melhor, é um sonhador activo, a que não falta certo fundo prático e
realista'. A actividade portuguesa não tem raizes na vontade fria, mas
alimenta-se da imaginação, do sonho, porque o Português é mais
idealista, emotivo e imaginativo do que homem de reflexão. Compartilha
com o Espanhol o desprezo fidalgo pelo interesse mesquinho, pelo
utilitarismo puro e pelo conforto, assim como o gosto paradoxal pela
ostentação de riqueza e pelo luxo. Mas não tem, como aquele, um forte
ideal abstracto, nem acentuada tendência mística. O Português é,
sobretudo, profundamente humano, sensível, amoroso e bondoso, sem ser
fraco. Não gosta de fazer sofrer e evita conflitos, mas, ferido no seu
orgunho, pode ser violento e cruel. A religiosidade apresenta o mesmo
fundo humano peculiar ao Português. Não tem o carácter abstracto,
místico ou trágico próprio da espanhola, mas possui uma forte crença no
milagre e nas soluções milagrosas.
Há no Português uma enorme capacidade de adaptação a todas as
coisas, ideias e seres, sem que isso implique perda de ca rácter. Foi
esta faceta que lhe permitiu manter sempre a atitude de tolerância e
que imprimiu à colonização portuguesa um carácter especial
inconfundível: assimilação por adaptação.
O Português tem vivo sentimento da natureza e um fundo poético e
contemplativo estático diferente do dos outros povos latinos. Falta-lhe
também a exuberância e a alegria espontânea e ruidosa dos povos
mediterrâneos. É mais inibido que os outros meridionais pelo grande
sentimento do ridículo e medo da opinião alheia. É, como os Espanhóis,
fortemente individualista, mas possui grande fundo de solidariedade
humana. O Português não tem muito humor, mas um forte espírito crítico
e trocista e uma ironia pungente.
A mentalidade complexa que resulta da combinação de factores
diferentes e, às vezes, opostos dá lugar a um estado de alma sui
generis que o Português denomina saudade. Esta saudade é um estranho
sentimento de ansiedade que parece resultar da combinação de três tipos
mentais distintos: o lírico sonhador - mais aparentado com o
temperamento céltico -, o fáustico de tipo germânico e o fatalístico de
tipo oriental. Por isso, a saudade é umas vezes um sentimento poético
de fundo amoroso ou religioso, que pode tomar a forma panteista de
dissolução na natureza, ou se compraz na repetição obstinada das mesmas
imagens ou sentimentos. Outras vezes é a ânsia permanente da distância,
de outros mundos, de outras vidas. A saudade é então a força activa, a
obstinação que leva à realização das maiores empresas; é a saudade
fáustica. Porém, nas épocas de abatimento e de desgraça, a saudade toma
uma forma especial, em que o espírito se alimenta morbidamente das
glórias passadas e cai no fatalismo de tipo oriental, que tem como
expressão magnífica o fado, canção citadina, cujo nome provém do étimo
latino fatu (destino, fadário, fatalidade).
Este temperamento paradoxal explica os períodos de grande
apogeu e de grande decadência da história portuguesa. Ao contrá rio do
que muitos disseram, o Português não degenerou; as virtudes e os
defeitos mantiveram-se os mesmos através dos séculos, simplesmente as
suas reacções é que variam conforme as circunstâncias históricas. No
momento em que o Português é chamado a desempenhar qualquer papel
importante, põe em jogo todas as suas qualidades de acção, abnegação,
sacrifício e coragem e cumpre como poucos. Mas se o chamam a
desempenhar um papel medíocre, que não satisfaz a sua imaginação,
esmorece e só caminha na medida em que a conservação da existência o
impele. Não sabe viver sem sonho e sem glória.
Esta maneira de ser torna particularmente difícil a tarefa dos
governantes, sobretudo em períodos históricos em que as circunstâncias
não permitem desempenhar uma acção que lhes agrade e desencadeie as
energias.
Nas épocas extraordinárias, quando acontecimentos históricos
puseram à prova o valor do povo, ou lhe abriram perspecti vas novas,
que o encheram de esperança, então brotaram por si, naturalmente, as
melhores obras do seu génio. Porém, nos períodos de estagnamento nasce
a apatia do espírito, a relutância contra a mediania, a crítica acerba
contra o que não está àquela altura a que se aspira, ou cai-se na
saudade negativa, espécie de profunda melancolia.
Percorrendo a história, podemos facilmente verificar como estas
características apontadas se repetem em diferentes épocas, explicando
certas acções e demonstrando a constância de alguns elementos
fundamentais da cultura portuguesa.
Em todas as épocas se verifica o temperamento expansivo e
dinâmico do Português. Sem ir à cultura dolménica, desde as épocas mais
remotas, nos tempos em que a actividade era a guerra, os Lusitanos
foram a expressão mais acabada da luta permanente e sem tréguas, que se
prolongou pela Idade Média nas lutas da Reconquista contra os Mouros,
para se transformar, finalmente, nas viagens de descobrimentos e de
colonização. É também sintomático os Portugueses terem participado em
grande parte das guerras europeias, mesmo quando não tinham interesses
directamente ligados a tais conflitos. Até a série de revoluções
fratricidas do século XIX e princípios do século XX provam o fundo de
permanente inquietação e actividade. Porém, essa actividade traz sempre
consigo um cunho de ideal. Quase nunca se verifica a acção precedida de
cálculo interesseiro e frio. Embora não lhe falte, por vezes, um fundo
prático e utilitário, o grande móbil é sempre de tipo ideal. Nas lutas
da Reconquista não se procura só reaver o solo que os Muçulmanos tinham
conquistado: lutava-se por um ideal religioso e expulsava-se o inimigo
da Fé. A grande empresa marítima visa, é certo, a descoberta do caminho
da índia e os negócios das especiarias, mas, além de se pretender
dilatar o Império, pretende-se dilatar a Fé. A última ideia justificava
a primeira, e não o inverso. Nunca soubemos separar o sonho da
realidade, ao contrário do Inglês, que procede friamente, orientado
pelo seu sentido prático. A maior desgraça da nossa história, a infeliz
campanha de Alcácer Quibir, em que desapareceu D. Sebastião com a élite
militar do seu tempo, não passou dum grande sonho vivido, de trágicas
consequências. Mas a história está cheia de curiosos episódios, como o
do Magriço e o dos Doze de Inglaterra, que vão defender em torneio umas
damas ultrajadas por cavaleiros ingleses, a comprovar o fundo de
sonhador activo do Português. Além disso, o desprezo pelo interesse
mesquinho e o gosto pela ostentação e pelo luxo nunca nos permitiram o
aproveitamento eficaz das grandes fontes de riqueza exploradas. Os
tesouros passavam pelas nossas mãos e iam-se acumular nos povos mais
práticos e bem dotados para capitalizar, como os Holandeses e os
Ingleses. Soubemos traficar, mas faltou-nos sempre o sentido
capitalista. No século XVI, quando Lisboa era o grande empério do
mundo, sob o brilho do luxo já se ocultava a miséria. Gil Vicente
descreve os fidalgos cobertos de rendas e brocados, com a sua coorte de
lacaios, mas sem dinheiro para comer. O gosto pelas jóias, pela pompa,
pelo luxo, é uma constante da nossa cultura. Desde as estações
proto-históricas do Noroeste, tão ricas em magníficos exemplares de
jóias de ouro, e, depois, nos períodos áureos, de que podemos citar a
embaixada de Tristão da Cunha ao papa e as magnificências do reinado de
D. João V, até aos nossos dias, tudo confirma o gosto pela ostentação e
pelo espavento. Contudo, poucos povos têm menos necessidade de conforto
do que o português. Ao contrário dos povos burgueses do Norte e Centro
da Europa, o nosso luxo não é um requinte que resulte do conforto,
é-lhe quase que oposto; é mero produto da imaginação, e não dos
sentidos. Ainda hoje temos as camas mais duras da Europa, e as ruas
estão repletas de automóveis de luxo. São poucas as casas ricas com
aquecimento e muitas delas não têm uma sala de estar. Mas essas mesmas
casas têm salas de visitas ou até salões de baile cheios de porcelanas
da Índia e da China. As pessoas modestas, cujas casas são despidas do
mínimo conforto, andam nas ruas vestidas com elegância ou com luxo. Um
pequeno empregado do comércio, de pouca ilustração e educação, faz mais
figura na rua do que um intelectual alemão ou suíço, de boa família e
com recursos. Da mesma maneira, qualquer empregadita, que mal ganha
para se alimentar, anda vestida impecavelmente e pela última moda. É
tal a importância que se atribui ao exterior que, mesmo no Verão e no
campo, as pessoas da classe média não se atrevem a tirar o casaco e a
gravata. Só nos últimos anos, por influência do cinema e do desporto,
isso vai sucedendo. Mas não se concebe que, por exemplo, um estudante
universitário aparecesse nas ruas de calção.
Outra constante da cultura portuguesa é o profundo sentimento
humano, que assenta no temperamento afectivo, amoroso e bondoso. Para o
Português o coração é a medida de todas as coisas.
O sentimento amoroso é muito forte em todas as classes sociais e, fora
o aspecto grosseiro, que se compraz em anedotas eró ticas, são inúmeros
os exemplos de grande e profunda dedicação, acompanhada de gestos de
verdadeiro sacrifício. Não só a história como a literatura nos dão a
prova irrefutável da permanência desta característica através dos
tempos. O exemplo mais curioso foi a grande paixão de D. Pedro por D.
Inês de Castro, que nem a morte conseguiu extinguir e que ainda hoje
serve de motivo poético e impressiona as sensibilidades. Na literatura
basta lembrar a poesia medieval, tão sentida e original, em que com
frequência se canta o amor da mulher pelo homem. A lírica de Camões,
esse grande amoroso, dá-nos exemplos da mais bela e mais repassada
emoção. As cartas de Soror Mariana Alcoforado, palpitantes de paixão
veemen. te, os sonetos de Florbela Espanca, as poe. sias de João de
Deus e muitos outros, sem esquecer a riquíssima poesia popular, parti
cularmente impregnada de sentimento amoroso, são outras tantas
afirmações desta constante da alma portuguesa.
Mas, além de forma puramente amorosa, a afectividade portuguesa
revela-se em relação aos parentes, aos amigos e aos vizi nhos. O
Português não gosta de ver sofrer e desagradam-lhe os fins demasiado
trágicos. Daí talvez a pobreza do género dramática da nossa literatura
e as soluções felizes que Gil Vicente soube dar a casos de traiçãc
conjugal, que em Lope de Vega ou Calderón acabam em vingança sangrenta
9. Ainda hoje o público gosta dos filmes de happy ending. Outro aspecto
curioso dessa característica são as touradas portuguesas, em que o
touro não morre e vem embolado, para não ferir os cavalos nem matar os
homens. O espectáculo perdeu a intensidade dramática que tem em
Espanha, mas ganhou em beleza, pela valorização do toureio, e mantém a
nota viril da coragem física com as pegas, em que os homens medem
forças com o touro, que é dominado a pulso. Cabe aqui acrescentar que
em Portugal não existe a pena de morte, certamente como consequência
dessa maneira de ser.
Como representantes do sentimento humano na literatura, temos,
por exemplo, Augusto Gil, João de Deus, Júlio Dinis, Trindade Coelho e
António Nobre. É este sentimento que explica muitas atitudes
desconhecidas noutros países e tão frequentes em Portugal, como a do
filho a quem oferecem uma boa situação no estrangeiro e que renuncia
por ver umas lágrimas nos olhos da mãe; prefere arruinar as suas
esperanças à ideia de a fazer sofrer. É também ele que determina um
sem-número de casamentos injustificáveis, em que o homem se sacrifica
para evitar o desgosto a uma rapariga com quem namorou algum tempo.
Quando vê o sofrimento que provoca a ideia do rompimento, decide-se a
casar e aguentar toda a vida uma situação que não foi determinada pela
íntima necessidade.
Contudo o Português não é fraco nem covarde. Detesta as
soluções trágicas e não é vingativo, mas o seu temperamento brioso
leva-o com excessiva frequência a terríveis lutas sangrentas. Quando o
ferem na sua sensibilidade e se sente ultrajado, ou perante um ponto de
honra, é capaz de reacções de extraordinária violência. São testemunho
disso os jornais diários, que relatam rixas tremendas entre amigos e
vizinhos. Antigamente, e hoje mais raramente, pela repressão que o
Estado tem criado, as lutas entre aldeias vizinhas tomavam aspectos de
batalhas campais. Mas, tirando o crime passional, são raros os casos de
homicídio perverso. Não se conhecem vampiros, como no Norte da Europa,
nem os assassinos que cortam as mulheres aos pedaços e os queimam ou
deitam aos rios, como em outros países sucede.
A própria religião tem o mesmo cunho humano, acolhedor e tranquilo. Não
se erguem nas aldeias portuguesas essas igrejas enormes e solenes, tão
características da paisagem espanhola, que na sua imponência apagam a
nota humana. A igreja portuguesa, ora caiada e sorridente entre
ramadas, ora singela e sóbria na pureza do granito, é simplesmente a
casa do Senhor. É sempre um templo acolhedor, habitado por santos bons
e humanos. Não se vêem os Cristos lívidos e torturados de Espanha. A
sensibilidade portuguesa não suporta essa visão trágica e dolorosa.
A prova mais evidente deste sentimento humano e terreno da
nossa religiosidade verifica-se na extraordinária expansão do estilo
românico, com o seu arco singelo bem apoiado na terra, e na falta de
assimilação do estilo gótico. Nunca sentimos esse profundo arroubo
místico, essa ânsia de ascensão que caracteriza o gótico. O nosso
espírito assimilou mal um estilo cuja expressão nos era estranha. Em
todos os monumentos arquitectónicos caracteristicamente portugueses
perdura uma certa espessura dos pilares, uma nítida tendência para a
profundidade e para a horizontalidade, contrária à ânsia de
verticalidade ascensional do gótico. O espírito português é avesso às
grandes abstracções, às grandes ideias que ultrapassam o sentido
humano. A prova disso está na falta de grandes filósofos e de grandes
místicos. Nem compartilha do racionalismo mediterrâneo, da luminosidade
greco-latina, nem da abstracção francesa, de grandes linhas puras, nem
do arrebatamento místico espanhol. Em vez das grandes catedrais góticas
da França e da Espanha, ou dos templos clássicos da Renascença
italiana, que não sentia, o Português acabou por criar um estilo
próprio, onde a sua religiosidade típica melhor se exprime: o
manuelino.
Foi no clima de exaltação dos descobrimentos marítimos que os
elementos psíquicos dispares da população portuguesa se fundiram e
alcançaram as suas expressões mais elevadas. O Atlântico atraíra sempre
com a sua magia um certo fundo sonhador e vago das populações
costeiras, enquanto as do interior se agarravam fortemente à solidez do
solo conquistado. Nas cantigas de amigo perpassava já o perfume dos
ventos do mar, enquanto nas pequenas igrejas românicas, fortemente
fincadas no chão, se exprimia a solidez rústica duma crença firmemente
enraizada na terra. Mas o Atlântico venceu. Os Portugueses lançam-se na
grande aventura e desviam a civilização do Mediterrâneo para o
Atlântico, mudando o curso à história universal. O velho do Restelo era
o homem da terra em face da loucura marítima. Porém, solidário como nos
tempos da Reconquista, quando ficava a cultivar as terras
recém-conquistadas, o camponês também não falhou a colonizar
as terras recém-descobertas. Apesar de a população metropolitana ser
insignificante, a Madeira e os Açores começam a ser colonizados em 1425
e 1439, isto é, 6 e 12 anos logo após o seu descobrimento. Por fim
descobre-se o caminho marítimo para a índia e toma-se posse oficial do
Brasil 'o. O profundo sentimento da natureza, já patente na Lírica
Medieval e na Menina e Moça, robustece-se em contacto com os grandes
horizontes abertos, com as tempestades e com os mundos exóticos,
povoados de animais e de gentes estranhas ". Os Lusíadas, que
entusiasmaram Humboldt pelo seu enorme encanto ao descrever os
fenómenos marítimos, são o grande poema do mar. Sente-se nele o
deslumbramento do poeta e de toda a geração o que precedeu:
Digam agora os sábios da Escritura
Que segredos são estes da Natura...
Perante a grandeza e os mistérios da natureza, que os Portugueses
vão a pouco e pouco descobrindo, nasce uma atitude espe cial, não
destituída dum certo fundo místico-naturalista, com tintas de
panteismo. Não panteísmo filosófico, mas sentimental. O Deus que se
adorava continuava a ser o mesmo, dentro da ortodoxia católica, mas o
mundo por Ele criado era muito mais variado e rico. É então que surgem
os Jerónimos como expressão arquitectónica máxima da religiosidade
portuguesa. A grande novidade era a decoração naturalista, inspirada em
motivos do mar e na exuberância da vegetação exótica. O antigo
sentimento da natureza, que só encontra até então expressão poética,
transporta-se agora para a forma plástica. Os templos enchem-se de
elementos da natureza, impregnados de sentido religioso, de evocações
de mundos longínquos e estranhos e dos mistérios do mar. Era natural
que esse povo de marinheiros quisesse decorar os seus templos com as
belezas do mundo recém-descoberto. Ainda hoje os pescadores rudes do
Norte de Portugal costumam levar como ex-votos ao santo da sua devoção
miniaturas de navios ou quadros alegóricos de qualquer naufrágio ou
perigo de que escapam. Porém, se na decoração há novidade
arquitectónica, a sensibilidade portuguesa manteve-se presa ao atavismo
românico, na solidez das proporções e no arco redondo. A sua
religiosidade rude e simples sente confiança num templo fortemente
apoiado na terra, onde paira uma obscuridade doce que repousa o
espírito.
O manuelino é, pela sua decoração, uma espécie de estilo
barroco, razão por que Eugénio d'Ors diz que o barroco nasceu em
Portugal '2. Contudo, no manuelino e, mais tarde, no nosso barroco
falta por completo o movimento musical que se verifica noutros países,
sobretudo na Áustria e nos arredores alpinos. Se o movimento é uma das
características mais salientes do barroco, temos de ver que esse
movimento toma entre nós uma feição especial que o afasta inteiramente
do pais das valsas. É um movimento parado, uma espécie de imóvel «
perpetuum mobile», como diz Santiago Kastner ao referir-se aos ostinati
dos compositores portugueses ". De facto, a actividade portuguesa é de
tipo flsico, embora seja determinada pela imaginação, mas há qualquer
coisa de estático na emoção portuguesa. O fundo contemplativo da alma
lusitana compraz-se na repetição ou na imobilidade da imagem.
Uma das características mais importantes da saudade é
precisamente essa fixidez da imaginação, que, por intensidade, se pode
tornar em ideia motora e conduzir à acção. A poesia medieval
impressiona tanto pela imobilidade dos pequeninos quadros, que se
repetem, que até houve quem lhe procurasse uma origem oriental". Além
disso, a literatura portuguesa manteve até hoje o carácter lírico. A
vocação para o género épico e dramático foi sempre menor, e até mesmo
Os Lusíadas valem muito pelo seu fundo lírico. Os romances actuais são,
da mesma maneira, falhos de acção, parados. Mas na música repete-se
exactamente o mesmo fenómeno. Em quase todos os compositores se
verifica a imobilidade, o apego a meia dúzia de desenhos musicais
fixos, às sequências obstinadas. Falta-nos a animação própria dos
Espanhóis e a predisposição para encadeamento de movimentos, frequente
noutros povos. Diz Santiago Kastner a propósito de Duarte Lobo que este
«logrou expressividade penetrante, que deriva antes da atitude
contemplativa e do ensinamento do que do afã de dramatização estilizada
e porventura excessiva» .
Não será isto, afinal, uma constante da alma portuguesa, que se
revela particularmente neste compositor? O «ostinatismo» que se
verifica na música erudita portuguesa, e que, parece, veio influenciar
a música europeia da época, é um dos aspectos do temperamento
português, que se pode notar em outras manifestações artísticas. O
manuelino ´esse mesmo ostianismo tão português como marítimo, feito
de ondas e de espuma e de vago apelo da distância. Onde há movimento
mais imóvel que o das ondas a rolar os seixos das praias?
É possível que o fundo histórico da imobilidade e do
«ostinatismo» da música erudita portuguesa sejam os intervalos
paralelos e isométricos das canções corais alentejanas e minhotas, que
na sua essência representam também a ideia do ostinato, mas a sua
verdadeira origem deve estar na alma contemplativa e obstinada dos
Portugueses. Foi a própria obstinação que tornou possível a realização
dum sonho que parecia superior às forças daqueles que o realizaram. O
manuelino, afinal, é a expressão arquitectónica desse sonho
materializado; é, como disse Reinaldo dos Santos, a «arte dos
Descobrimentos '°.
O «ostinatismo» tem, como a saudade, mais que uma face. Se por
trás dele existe uma ideia grande pode ser fértil em resultados, pela
sua enorme capacidade de penetração, de movimento em profundidade. Mas,
sem esse amparo, tem o perigo de conduzir à imobilidade mental, ou ao
movimento aparente e sem sentido, porque lhe alta a força de coesão
social, que leva o 'ortuguês a ultrapassar o seu individualismo e a
colaborar. De facto, o Português tem um forte sentimento de
individualismo, que se não deve confundir com o de personalidade.
Enquanto a personalidade anglo-saxónica ou germânica não colide
geralmente com os interesses sociais e só preza a sua liberdade íntima,
o Português, da mesma maneira que o Espanhol, tem uma forte ânsia de
liberdade individual, que muitas vezes é anti-social. A tendência a
opor-se a tudo que se lhe não apresente com carácter humano obriga-o a
lutar contra as leis ou organizações gerais. Detesta o impessoal e o
abstracto e põe acima de tudo as relações humanas. 0 seu fundo humano
torna-o extraordinariamente solidário com os vizinhos, e em poucas
regiões da Europa existirá ainda vivo como em Portugal o espírito
comunitário e de auxílio mútuo`. Mas qualquer organização geral que
limite as liberdades individuais produz imediatamente um movimento de
reacção em que todos são solidários. Um pequeno exemplo anedótico
verifica-se no costume de os automobilistas fazerem sinais com os
faróis a todos os carros com que se cruzam, sempre que tenham visto a
polícia das estradas, para os porem de sobreaviso. A policia, como
representante da lei geral, é considerada como inimigo, e logo surge a
reacção.
Da mesma maneira o funcionário, até quando veste uma farda e
obriga a cumprir a lei, tem idêntica dificuldade em represen tar um
papel impessoal. Esta tipica feição portuguesa dá origem a uma das
burocracias mais rígidas que até hoje conheci na Europa. O funcionário
menor agarra-se desesperadamente à letra da lei, sem tentar
compreender-lhe o espírito. Qualquer caso menos corrente já o não quer
resolver e atira-o para o seu superior hierárquico. Sente-se mal e
pouco à vontade metido naquela camisa de forças, que o impede de ser
ele próprio e de se apoiar no seu instinto humano. A própria tristeza e
má vontade que, em geral, traz estampadas no rosto devem ser a
consequência do violento esforço de adaptação a funções para as quais
não sente vocação. Esta tendência a sobrepor a simpatia humana às
prescrições gerais da lei fez com que durante muito tempo a vida social
e pública girasse à volta do empenho ou do pedido de qualquer amigo.
Pedia-se para passar nos exames, para ficar livre do serviço militar,
para conseguir um emprego, para ganhar uma questão, enfim, para todas
as dificuldades da vida. Hoje em dia tal hábito tradicional tem sido
contrariado e já quase não existe. Porém, este fundo de simpatia que
regula as relações entre os Portugueses está tão entranhado que até no
comércio, onde o interesse se devia sobrepor a tudo, ele se verifica.
Disse-me um vendedor alemão, que viveu muitos anos em Portugal, que
para fazer negócio no nosso país era indispensável conquistar a
simpatia do comprador. Uma vez isto conseguido, tinha-se a certeza de
obter a preferência. Pelo contrário, noutros países, a única maneira de
vender é oferecer maiores vantagens materiais, independentemente de
toda a amizade pessoal.
É a sobreposição dos valores humanos ao lucro e ao utilitário
que explica muitos capítulos da nossa história e que deixa compreender
muitas formas da sociedade actual. Tal mentalidade é a negação do
espírito capitalista. No campo, sobretudo, é ainda viva a mentalidade
patriarcal, onde a mesa está pronta para quem se quiser sentar e onde
se não nega o pão e o caldo ao mendigo que passa. De dinheiro podem ser
avaros, mas não fazem as contas ao que é da sua lavoura. Chegam a
vender coisas mais baratas do que elas lhes custam. Porém, nas próprias
empresas comerciais e industriais existem ainda muitos casos de
absoluta falta de racionalização. O Português gosta de fazer projectos
vagos, castelos no ar que não pensa realizar. Mas no seu intimo alberga
uma certa esperança de que' as coisas aconteçam milagrosamente. Esta
forte crença no milagre, cujo aspecto mais grosseiro é a enorme
popularidade do jogo da lotaria, chega a tomar aspectos curiosos, dos
quais sobressai o sebastianismo. Todos esperavam que o rei D.
Sebastião, morto em África, surgisse numa manhã de nevoeiro montado no
seu cavalo de guerra. A crença viva é decididamente uma força, mas,
quando toma aspectos irracionais e supersticiosos, pode ser uma
fraqueza. Um dos aspectos maus e muito correntes é a crença na sorte:
«Fulano tem sorte» e «eu não tenho sorte» servem para diminuir as
qualidades dos outros e justificar a própria incapacidade.
A imaginação sonhadora, a antipatia pela limitação que a razão
impõe e a crença milagreira levam-no com frequência a situa ções
perigosas, de que se salva pela invulgar capacidade de improvisação de
que é dotado. Quando se aproxima a catástrofe, abrem-se-lhe os olhos da
razão, e então é capaz de desenvolver tal energia e com tal eficiência
que a isso é que se poderia chamar milagre. O facto de se repetirem
tais situações deve explicar-se pela confiança que o Português tem na
facilidade das soluções da última hora. Nesses momentos a sua
inteligência viva, a enorme capacidade de adaptação a todas as
circunstâncias e o jeito para tudo permitem-lhe dominar as situações
com êxito.
É ainda essa enorme capacidade de adaptação uma das constantes
da alma portuguesa. O Português adapta-se a climas, a profissões, a
culturas, a idiomas e a gentes de maneira verdadeiramente excepcional.
0 Português foi sempre poliglota. Já os nossos clássicos escreveram
quase todos em mais de uma língua, e mesmo as pessoas de pouca
ilustração aprendem e sabem com frequência falar um idioma estrangeiro.
Mas a capacidade de adaptação é geral; podia ilustrar-se com inúmeros
exemplos. É, porém, curioso que o Português se adapta a outro ambiente
cultural tão bem que parece ter sido assimilado; mas volta para
Portugal e em pouco tempo já não se distingue dos outros. Enquanto o
Inglês fica sempre inglês em toda a parte, e o Alemão, quando deixa de
o ser, dificilmente volta a tornar-se alemão, o Português assimilou
completamente o provérbio que diz: «Em Roma sê romano.» Mas só enquanto
está em Roma.
A capacidade de adaptação, a simpatia humana e o temperamento
amoroso são a chave da colonização portuguesa. O Portu guês assimilou
adaptando-se. Nunca sentiu repugnância por outras raças e foi sempre
relativamente tolerante com as culturas e religiões alheias. A
miscigenação portuguesa não tem só uma explicação sensual, embora a
caracterize uma forte sexualidade. Ainda hoje o Português tem decidida
inclinação por mulheres doutras raças e é capaz de mostrar grande
afeição ou profundo amor. É célebre o amor de Camões por uma escrava,
cantado em versos sentidos. Mas o Português não gosta só de certas
raças, gosta de quase todas. Um dia, ao folhear um livro de registo de
portugueses no consulado de Berlim, fiquei espantado com o elevado
número de casamentos de portugueses com alemãs, e já tenho encontrado,
mesmo em aldeias primitivas, mulheres francesas, espanholas e italianas
(estas residentes no Brasil) casadas com antigos emigrantes.
O Português é menos exuberante, ruidoso e expansivo que os
outros meridionais. Um só espanhol, numa carruagem de com boio, abafa
com a sua voz a de todos os portugueses. Além disso, o Português é
inibido por um forte sentimento do ridiculo. Como é muito sensível e
dotado da faculdade de se aperceber do que vai nos outros, receia ser
vítima da ironia e da crítica trocista, tão comum em Portugal. De
facto, a ironia, muito mais do que o humor, tem fundas raizes na
cultura portuguesa; desde as cantigas de escárnio e maldizer da Idade
Média até à ironia de Eça de Queirós há toda uma gama de coloridos.
Temos a ironia benévola de Gil Vicente, a mordente de Nicolau Tolentino
e de Bocage e a ironia pungente ou sarcástica de Fialho e de Camilo.
Mas o próprio povo, com as suas certeiras alcunhas e apelidos, ou com
os apodos tópicos, ou com os cantares ao desafio, etc., mostra a
terrível arma de que é dotado. Por isso, a sensibilidade, que é um dos
grandes elementos positivos da mentalidade portuguesa, é também um dos
grandes elementos da sua fraqueza. O sentimento do ridículo e o medo da
opinião alheia abafam nele muitos impulsos generosos, deformam a sua
naturalidade e impedem-no de se entregar livremente aos prazeres
simples e à alegria espontânea. Nas classes populares tal sentimento é
moderado, mas nas outras classes é tão saliente que se tornam com
frequência ridículos pelo medo de o parecer. Tal sentimento complica-se
pela consciência das glórias passadas, pelo desprezo paradoxal pelos
valores burgueses e pela admiração pelas realizações alheias. O
Português, muito intimamente, é incapaz de ambicionar para a sua pátria
o bem-estar e a prosperidade que, por exemplo, o Suíço conseguiu pelo
esforço pertinaz e constante. É certo que o Português se envergonha
perante um suíço, pelo elevado nível de vida que aquele soube
conquistar, mas se fosse ele o suíço, envergonhar-se-ia da mesma
maneira, por ter conseguido um bem-estar sem glória.
É um povo paradoxal e difícil de governar. Os seus defeitos
podem ser as suas virtudes e as suas virtudes os seus defeitos,
conforme a égide do momento.