Quem nos liberta desta cruz?

(Última edición: lunes, 12 de diciembre de 2005, 21:54)

Quem nos liberta desta cruz?

Expresso, 10 de Dezembro de 2005

«Esta religião, baseada num incontrolável relativismo é o 'eduquês'.»

DEPOIS de muito se discutir a famosa questão dos crucifixos nas salas de aula (onde apenas resistia em 20 escolas, por todo o país), talvez seja altura de discutir algo verdadeiramente importante para a educação dos nossos filhos. Porque é uma cruz bem mais pesada do que qualquer crucifixo o ataque sistemático que vem sendo feito ao conhecimento científico, ao saber e aos valores.

Vejamos um exemplo esclarecedor: está numa comunicação de João Filipe de Matos, um dos dirigentes do Centro de Investigação em Educação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e director da sua «Revista de Educação». Este académico, responsável pela formação de professores, parte de um princípio claro, recorrendo a uma citação: «nas sociedades capitalistas, a escola justifica e produz desigualdades».

Por isso, defende que - e cito para que não restem dúvidas - «a disciplina de matemática deve ser urgentemente eliminada dos currículos do ensino básico». Matos prefere que se ensine - volto a citar - «educação matemática». Ou seja, o professor tem uma religião e quer impô-la. E o seu primeiro mandamento é que nada se deve ensinar, salvo ensinar a aprender.

O mesmo responsável dá exemplos delirantes. Se o casal Silva quer ir do Campo Grande ao Parque das Nações, com os seus dois filhos, e a viagem de autocarro custa um euro por bilhete, quanto irá pagar?

Ora a resposta normal seria quatro euros. Mas isso é matemática antiga, cheia de mitos a que Matos quer pôr um fim. Ao cabo de vários argumentos sociais, ecológicos e políticos, Matos acha que quatro é muito, porque deveria haver desconto.

EU SEI que para a maioria dos leitores o professor Matos parece fruto da minha imaginação. Mas não é. Existe e, como ele, existem inúmeros seguidores desta religião que, um pouco por todo o Ministério da Educação, alastra as suas influências. Não só em Portugal, mas à volta do mundo. Esta espécie de religião, baseada num incontrolável relativismo, assentou arraiais na política da educação e criou o seu próprio credo - o «eduquês».

Graças a ela, os nossos filhos sofrem com reformas atrás de reformas. Cada vez sabem menos e, paradoxalmente, cada vez gastam mais tempo na escola.

Graças a esta religião, de que o prof. João Filipe Matos é um dos mais distintos hierofantas, os valores, a sabedoria e o conhecimento são constantemente postos em causa, como se fosse possível educar sem regras, mas apenas com excepções. A viagem do casal Silva ao Campo Grande é esclarecedora do seu incontrolável relativismo: 4x1 nem sempre são quatro; a resposta certa depende do ponto de vista do observador. E qual é o ponto de vista do prof. Matos? Lembrem-se da citação inicial: nas sociedades capitalistas, a escola justifica e produz desigualdades. Ele quer-nos todos iguais, autómatos de um sistema comandado pelas suas ideias sobre o mundo e a vida. Do seu lugar da academia, o prof. Matos forma os professores dos nossos filhos. E todos nós acabamos a carregar a cruz que é a desgraça do seu ensino. Quem nos liberta desta cruz?

hmonteiro@mail.expresso.pt


Do crucifixo à cruzada contra as ciências da educação

(Direito de resposta)

Os meios de comunicação social desempenham um papel fundamental na nossa sociedade informando, esclarecendo, questionando, perturbando. O sarcasmo é um recurso fundamental do jornalista e do comentador, que procura ironizar, estremar e até deformar uma situação, para a tornar cómica e objecto de desprezo dos respectivos leitores. No entanto, há um ponto para além do qual o exercício do humor deixa de ser saudável e passa a ser mistificador, ofensivo e socialmente inaceitável.

É o que se passa com a prosa de Henrique Monteiro, na sua coluna no Expresso de 10.Dez.2005. Esta coluna dedica-se a caricaturar as posições de João Filipe Matos, que, de resto, falsamente apresenta como um dos dirigentes do centro de investigação em educação, entidade em que este docente não assume qualquer cargo de responsabilidade. Interpretando a seu gosto a escrita académica marcada por uma linguagem própria e por categorias necessariamente diversas das do senso comum , não é difícil ao comentador encontrar múltiplos pontos de admiração e até de escândalo nas palavras deste docente, que é livre de ter as suas opiniões e perspectivas próprias sobre os problemas educativos e sociais.

Gostaria, no entanto, de deixar claro que no Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa defende-se a importância de um ensino da Matemática de qualidade, alicerçado em programas e políticas educativas que valorizem esta disciplina como um elemento fundamental do património cultural de todos nós e numa formação de professores contemplando as vertentes científica, educacional e prática, preocupações que naturalmente estendemos a todas as disciplinas científicas. Defende-se e pratica-se igualmente um ensino e uma formação de professores marcada por valores de respeito pela verdade, pelo rigor, pela cultura, pela diferença, pela dignidade e pela atenção aos interesses e necessidades dos educandos.

Henrique Monteiro nem consegue ser original. Limita-se a repetir a lengalenga de uns tantos outros que, sem perceber grande coisa do que falam (o que sabe ele sobre o ensino da Matemática nas escolas?), se limitam a procurar nas instituições de formação de professores um bode expiatório para os problemas de que, reconhecidamente, padece a educação em Portugal. Não deixa de ser curioso vê-lo a esgrimir o fantasma da religião e seguir, ele próprio, a lógica de cruzada, procurando queimar o inimigo na praça pública com base num libelo acusatório sumário, que no fundo se resume ao estafado fantasma do eduquês.

Um Subdirector pode ter os acessos de mau humor que entender mas não deve ser confundido com o órgão de comunicação social onde escreve. Estamos, por isso, à disposição do Expresso, como temos estado de outros órgãos de comunicação social, para dar a conhecer o nosso trabalho, as nossas posições sobre a educação, as nossas preocupações e projectos. Os jornalistas e comentadores inteligentes percebem que os problemas da educação são sobretudo reflexo dos problemas da sociedade e das políticas educativas e não o resultado da aplicação das teorias dos investigadores cujo impacto na cena educativa é de resto muito desigual. Por isso mesmo, mais vale procurar contar com o contributo de quem estuda as questões da educação para compreender e enfrentar estes problemas do que prosseguir a campanha primária e inútil que só desvaloriza aqueles que nela se envolvem.

João Pedro da Ponte

Presidente do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa

Coordenador Científico do Centro de Investigação em Educação


A qualidade da formação dos professores, como a dos médicos, engenheiros ou jornalistas, é um problema sempre em aberto e a merecer questionamento. A Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa é uma das instituições que ao longo dos anos tem prestado esse serviço a um nível que reputamos de valor mas que caberá a outros reconhecer e qualificar.

Os maus resultados que observamos no Ensino em Portugal são inquestionáveis e alguma responsabilidade pode ser atribuída às instituições de formação de professores, como a muitos outros factores que recentemente temos visto discutidos publicamente. Não é abonatório de um jornal de referência a invocação primária de um Grande Satã como a causa única de um qualquer problema.

Mais grave do que a ligeireza do artigo parece ser a inconsciência por parte do autor da peça sobre o que é a Universidade. As palavras referenciadas são retiradas de um texto de cariz universitário onde, por definição de Universidade, o autor pôde exprimir livremente a sua teoria, por bizarra ou incompreensível que possa parecer.

O método do jornalista é o da crucificação das ideias na praça pública. O passo seguinte é queimar a publicação e se a fogueira for suficiente podemos incluir o autor. Esta percepção sobre a Universidade, tão tradicionalmente Inquisitorial e tão vivamente expressa pelo Subdirector do Expresso é uma das razões do persistente atraso cultural e intelectual de Portugal (mas não será decerto a única). O Expresso presta assim um serviço inestimável à atávica burrice nacional mas ainda assim mostra o cuidado que se deve ter quando se escreve sobre cruzes.

Nota : ao autor e leitores interessados posso recomendar a edição de 27 de Abril de 2000 do jornal New York Times, onde na primeira página se pode ler o artigo The New, Flexible Math meets Parental Rebellion. Facilmente se compreende que o problema não é local, não é novo, não é simples, e que se pode tratar jornalisticamente a um nível muito mais elevado.

Nuno M. Guimarães

Presidente do Conselho Científico e Directivo

Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa

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