MEMÓRIAS FELIZES DE ILUSTRES ALEXANDRINOS

(Modifié le: dimanche 5 février 2006, 23:35)
Público, 5 Fev 2006

Quatro ilustres ex-alunos do Alexandre Herculano
estiveram ontem a desfiar as suas recordações e afectos
do centenário liceu portuense. Histórias carregadas
de humor e ternura que contagiaram a sala.
POR NUNO CORVACHO

MEMÓRIAS FELIZES DE ILUSTRES ALEXANDRINOS

“Estamos todos muito mais
novos!” – o comentário de Rui
Vilar, ao dirigir-se àquela plateia
cheia de gente para cima
dos sessenta anos e preparada
para contar e ouvir contar
histórias do passado, podia ser
tomado por um exercício de ironia,
não fosse o caso de todos
eles terem ali rejuvenescido
de verdade. Não há, de facto,
outro nome a dar àquilo que
aconteceu ontem à tarde no
anfiteatro do liceu portuense
Alexandre Herculano, que
por estes dias comemora o
seu centésimo aniversário: o
bruá cúmplice das vozes, os
suspiros de contentamento, os
risos a abrirem-se num leque
furtivo e um inconfundível
desassossego juvenil a tomar
definitivamente conta da sala.
Como se aquele anfiteatro de cidadãos
grisalhos e respeitáveis,
ali reunido para comemorar a
memória da escola onde cada
um deles passara os seus irrepetíveis
anos de adolescência,
se tivesse magicamente transformado
numa sala de aula e
um qualquer professor estivesse
a ponto de reaparecer a
qualquer momento para repor
a ordem.
Alguns já lá não deviam estar
desde o tempo em que haviam
completado os seus estudos, décadas
atrás. Decerto já teriam
contado melancolicamente as
rugas e cabelos brancos uns
dos outros mas verificado
com ternura que a cintilação
nos olhares continuava igual.
Agora, porém, havia ali um
motivo especial para os circunstantes
redobrarem de
atenção. Estavam ali quatro
ilustres ex-alunos que tinham
sido chamados a desfiar as suas
memórias afectivas: além
do presidente da Fundação
Gulbenkian, Rui Vilar (que
disse ter andado no liceu “de
49 a 56 do século passado”), o
empresário Belmiro de Azevedo
(que lá entrou há 57 anos), o
cientista Sobrinho Simões (aluno
entre 57 e 64) e o economista
António Borges (o mais novo,
que saiu do liceu em 1967).
Já lá vão quase cinquenta
anos, mas Sobrinho Simões
lembra-se bem do dia em que
o pai o “largou” à porta do Alexandre
Herculano e lhe disse:
“E agora desenrasca-te!”. Ainda
habituado à pequena escola
33-A da Rua de Costa Cabral,
o rapazinho de dez anos logo
ficou impressionado com a
extensão dos corredores, a
altura das paredes e sobretudo
o “tamanho” dos colegas. “A D.
Maria da Graça, que foi a minha
professora na instrução
primária, tratava-nos por tu.
Ali, no liceu, éramos tratados
por ‘senhores’. Ora isso foi um
salto enorme!”.
Rui Vilar também não foi indiferente
àquele casarão “enorme
e solene” da Avenida de Camilo
e ao impacte dos cartazes
dissuasores que algum espírito
salazarista colocara em pontos
estratégicos do liceu com frases
tão edificantes como “No barulho
ninguém se entende, é por
isso que na revolução ninguém
se respeita” ou “Se soubesses
o que custa mandar, gostarias
de obedecer toda a vida”. Belmiro
de Azevedo chegou a ser
por um curto período chefe de
quina na Mocidade Portugue-
sa, mas, logo que pôde, meteuse
em actividades de xadrez
como desculpa para não usar
a farda. Já Vilar, animado da
mesma intenção, optou por se
inscrever em aulas de rádio,
tendo andado um ano inteiro
para construir um aparelho,
sem o conseguir.
Mas nenhum deles deixa de
reivindicar memórias estruturantes
do Alexandre Herculano.
Belmiro de Azevedo, por
exemplo, disse ter cimentado
por lá a ética de “tolerância
zero” que lhe conforma a vida
– “zero erros, zero mentiras” – e
ganho o gosto pela Matemática
que, para ele, é um instrumento
tão natural como “andar de
bicicleta”. António Borges vai
mais longe, ao considerar-se
“apaixonado” pela ciência dos
números, em grande parte por
influência de um professor, e
já não tanto pela parte musical,
cujas aulas de canto coral
eram um “verdadeiro fiasco”.
Rui Vilar recordou a influência
de Óscar Lopes (“que, apesar
de comunista, nos deu a ler
a Pátria Portuguesa, de Júlio
Dantas, por ser um livro bem
escrito”), a tertúlia Caminho,
que ele próprio e alguns colegas
fundaram e onde se discutiram
temas tão sisudos como a Música
de Beethoven e a Poesia
Romântica e Simbolista, bem
como as sessões do cineclube
liceal em que pela primeira vez
se viram filmes de Jacques Tati
e do neo-realismo italiano.
Para Sobrinho Simões, a
“rigidez curricular” do ensino
ministrado à época e a
prevalência da memorização
não foram obstáculo a que os
professores tivessem também
sabido “motivar” os alunos no
gosto pelo conhecimento. Se a
semente ficar, pode ser que se
cumpra a profecia avançada no
início da sessão pelo presidente
da Assembleia de Escola, José
Luís Sarmento: “Que daqui
a cinquenta anos possa um
sucessor meu ter a honra de
se dirigir a uma assembleia de
alexandrinos tão ilustre e tão
rica de exemplos como esta.
Quem sabe não estarão hoje
nas nossas salas de aula os
cientistas, empreendedores,
artistas, estadistas e filantropos
do futuro?

Tive um extraordinário professor de Matemática, um homem já com uma
certa idade, discreto e humilde. Despertava o interesse e fez com que eu
me apaixonasse pela Matemática. Se não fosse ele, eu teria de certeza
seguido uma carreira diferente.
No meu tempo, não havia raparigas no liceu. O ambiente era mais
sossegado. Havia menos concorrência. É que nestas idades elas são mais
produtivas...
ANTÓNIO BORGES
ECONOMISTA

Havia um rapaz gordo, simpático, o Vieira, que tinha um rosto
permanentemente sorridente. A certa altura, o Sena Esteves, que era o
professor de Química, achou que o miúdo estava a gozar com ele e deulhe
uma lambada. No dia seguinte, depois de se ter apercebido do erro,
deu-lhe um chocolatezinho com uma medalha e pediu-lhe desculpa.
Houve uma vez em que eu trepei pelo cano da água até à sala onde estava
a decorrer um exame de Desenho. Consegui fazer o teste no lugar de um
aluno que estava em dificuldades e ele acabou por ganhar o prémio.
BELMIRO DE AZEVEDO
PRESIDENTE DO GRUPO SONAE

Tínhamos um professor de Inglês, o José Luís Afonso, que passava a vida
a trabalhar nos seus dicionários e misturava permanentemente as duas
línguas. “Stop talking, meninos!”, dizia ele.
Em 53/54, cinco alunas começaram a frequentar o liceu que até então
era só de rapazes. Tinham um recreio em espaço próprio que logo foi
baptizado de “gineceu”. Aquelas raparigas inevitavelmente provocaram
por ali terramotos sentimentais...
RUI VILAR
PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO GULBENKIAN

Nós éramos miúdos e, no início do liceu, éramos confrontados com coisas
que não conseguíamos interpretar muito bem. O meu colega Zé Marcelino
veio uma vez ter comigo para me dizer: “Já sei donde é que vêm as crianças!”.
“Donde?”, perguntei eu. “Do rabo”, disse ele.
Eu era muito mau a Canto Coral. E fiz uma prova tão ordinária que o
professor até pensou que eu tinha feito de propósito. De maneira
que ele acabou por me pôr juntamente com o coro. Mas, quando
percebeu o desastre que eu era, disse-me logo: “Bem, tu agora estás aí,
mas ficas calado!”.
SOBRINHO SIMÕES
INVESTIGADOR NA ÁREA DA MEDICINA

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