Aos
106 anos, Maria Virgínia é a mais antiga aluna viva da Universidade de
Coimbra, onde ingressou em 1917 em Físico-Química. Fundou a primeira
república feminina da cidade e lembra-se bem de Salazar a tirar-lhe
«chapeladas» de galanteio
Tive uma vida fora do vulgar. Tão extraordinária... A
entoação, aristocrática, pausada, correctíssima, parece saída de uma
peça de teatro de época. Maria Virgínia, que há duas semanas completou
106 anos, nasceu em 1899, no Porto, onde o pai, João Ferreira de
Almeida, cursava Medicina. A mãe, Beatriz Laura, deu-a à luz em casa,
na Rua da Cedofeita, na exacta morada onde outrora vivera Carolina
Michaëlis, a primeira mulher a leccionar numa universidade portuguesa.
E mandou o acaso que Virgínia lhe seguisse o pioneirismo. Em 1917, num
Portugal 70% analfabeto, matricula-se na Universidade de Coimbra (UC)
no curso de Físico-Química - é hoje a mais antiga aluna viva deste
estabelecimento de ensino. Três anos depois funda, com duas colegas, a
primeira Casa Independente de Raparigas, vulgo república feminina, da
cidade estudantil.
«Perdoe se já não recordo tudo, a minha memória está fraquinha»,
desculpa-se em antecipação a anciã, desfazendo-se num risinho
bem-disposto. Maria Virgínia mantém uma vivacidade inesperada para quem
já conheceu três séculos. O ouvido foi sumindo mas a voz permanece
firme. Quase tanto quanto as pernas, que se agitam pela sala quando
decide mostrar que ainda sabe dançar um minuete, atrapalhada pelas
pantufas pouco propensas a bailes. Sobe e desce as escadas, senta-se e
levanta-se com agilidade, tanto mostra como toca violão como se exibe
ao piano, ao mesmo tempo que canta modas tradicionais, aprendidas na
mocidade.
Vive sozinha, orgulhosa na sua semi-independência apoiada em duas
empregadas - uma de dia, outra à noite - e nos filhos que a acarinham
como porcelana fina. É Virgínia quem atende o telefone em casa e nunca
precisou de usar o 112 preso a fita-cola no portátil, que guarda junto
a si. Ao seu lado reside também o álbum fotográfico, que conhece de
cor. Puxa-o para ela, folheia-o e pára a admirar um retrato de família,
que o tempo tornou sépia. «É este o meu pai. Foi ele que me deu uma
mocidade tão especial.»
1921 - Virgínia com as colegas Olívia Antunes e Teresa Basto no Laboratório de Física da Universidade de Coimbra
O dedo aponta um homem alto, altivo, de farfalhuda pêra
e bigode e chapéu de feltro. Acabado o curso, João Ferreira de Almeida
abandona a Invicta e monta consultório e residência em São Pedro do
Sul. Torna-se médico de província, que acode aos enfermos a trote de
cavalo. Mais tarde, ascende a Governador Civil de Viseu (de conhecida
ideologia republicana), dirigente do jornal «Povo da Beira» e director
das termas locais.
É ele a figura tutelar de Maria Virgínia, que perde a mãe aos cinco
anos. A orfandade materna desencadeia uma infância de carinho
exacerbado - a ela e à irmã Maria Helena -, quer das tias por dever
familiar quer das senhoras da sociedade local por interesse
casamenteiro no viúvo. «Convivíamos com a fina flor da nobreza beirã»,
recorda, com uma saudade suspirada dos passeios de «landau» - carruagem
com duas capotas de abrir -, puxado a cavalos, conduzido pela baronesa
de Palme. Ou das partidas de ténis, em que a elasticidade dos passes
era comprometida pelos vestidos compridos. Ou dos banhos no Vouga,
tomados longe de olhares indiscretos numa casota de madeira no meio do
rio.
Mas aos 18 anos disse ao pai que queria mais. Mais do que o piano, a
arte de bem cavalgar, os dotes de sociedade, o francês irrepreensível,
queria ir aprender inglês para Londres, onde vivia uma tia. Os estudos
eram o escape «para fugir da chateza de mesmice daquela terra pequena».
O liceu já fora feito em Viseu, no edifício que alberga hoje o Museu
Grão Vasco. O progenitor, que a queria por perto, acenou-lhe com a
Universidade de Coimbra. Ela concordou e escolheu Medicina. Ele recusou
novamente «porque não era bom para uma mulher que quer casar e ter
filhos lidar com doenças», recorda Virgínia. «Então optei por
Físico-Química, porque tinha laboratório, não era só teoria. Em São
Pedro, não me lembro de outra rapariga que tenha ido para o ensino
superior».
Aos sete anos, com a irmã Maria Helena
Não admira. Em 1917, ano de ingresso da portuense na
UC, apenas ali estudavam 70 mulheres - em 1.198 inscritos - e só mais
dez tinham optado por «sciencias», entre as quais Maria Guardiola, que
seria uma das três primeiras deputadas da Assembleia Nacional. Foi o
ano das aparições de Fátima, Portugal mergulhara numa crise económica,
escasseava o pão e o carvão. Começara a revolução russa, a Finlândia
tornara-se independente, nasceram John F. Kennedy e Indira Gandhi,
morreram Mata Hari e Rodin.
Em Coimbra, Maria Virgínia partilhava o curso e a casa de caloira -
a Casa das Cruzes, nos Palácios Confusos - com Maria Teresa Basto,
companheira de Viseu. Passava horas no último andar, onde a janela lhe
abria a vista sobre o Mondego. António Salazar, que nesse ano tinha
começado a leccionar na Universidade, como assistente de Ciências
Económicas, morava perto, na Rua dos Grilos, numa casa partilhada em
regime de «república» com o padre - mais tarde cardeal - Cerejeira.
«Lembro-me bem quando estava à janela e o Salazar passava. Ele
atirava-me cada chapelada. Ai que graça! Depois ficou célebre...»,
recorda Virgínia num riso envergonhado. Foi fruto desse conhecimento
«fenestral» que, ao partir para Lisboa, o professor lhe pediu que
guardasse a mobília de jantar. «Eu disse que sim. E aproveitei-me bem.
Mais que uma vez lá ofereci jantares a amigos.»
O curso de Físico-Química revelou-se difícil. Ao longo de sete anos
- cinco de currículo e dois de Escola Normal Superior, para aceder ao
magistério secundário -, cadeiras como Desenho de Máquinas, Cálculo
Diferencial ou Cristalografia obrigaram Maria Virgínia a decorar
fórmulas sem conta dizendo-as bem alto, repetidamente, enquanto
caminhava em pêndulo pela casa. Todos os anos havia novos achados: a
Teoria da Relatividade Geral de Einstein e a descoberta da Estrutura
Molecular ocorreram pouco antes da sua chegada a Coimbra. «Mas
licenciei-me com altos valores: 16!»
Com a família paterna (o pai é o primeiro da direita)
Na universidade, as mulheres eram tratadas por «vossa
excelência» e «senhora dona». «Os rapazes iam para ao pé de nós
conversar, mas sempre com muito respeito. Éramos novinhas mas era como
se fossemos já velhinhas», explica a anciã. Mas nas ruas, quando as
avistavam, os mancebos gritavam de janela em janela «venham vê-las
passar!», com promessas de rosas e violetas. «Éramos poucas e
bonitinhas...» As mulheres não participavam nas actividades da
Associação Académica nem entravam na sede. Tinham pasta de fitas, mas
não vestiam capa e batina. A primeira Queima das Fitas ocorreu em 1919,
andava ela no 2º ano, mas só se lembra de assistir. Respeitosamente.
A 20 de Janeiro de 1920, porém, decide imiscuir-se num universo até
então só masculino. Com Maria Teresa Basto, Dionísia Camões e Elisa
Vilares funda a primeira Casa Independente de Raparigas de Coimbra, no
nº 28 dos Palácios Confusos. A «república» tinha regras: não era
permitida a entrada a homens, a não ser acompanhados de uma senhora;
era mantido um diário com a colaboração de todas - que está ainda à
guarda da família; e era dever das habitantes fundar uma organização
católica para estudantes universitárias - o Círculo Académico Feminino
Católico.
Durante a pausa de um jogo de ténis
Acabado o curso, Maria Virgínia foi para professora,
colocada durante um ano no Liceu Maria Amália, em Lisboa. Rumou depois
ao Liceu Infanta D. Maria, em Coimbra, onde ficou até se reformar aos
75 anos. Leccionou Físico-Química, Zoologia, Mineralogia, Botânica e
até Trabalhos Manuais. Teolinda Gersão esteve entre as suas «alunas
encantadoras», primeiro nas manualidades, depois a Química. «Pôs-nos a
fazer coisas que nos pareciam impossíveis, desde pastas para
documentos, em cartão, a caixas para bolos, em papel, iguais às que os
empregados faziam na Central e no Nicola. E pôs-nos a escrever cartas
para delegações de turismo e câmaras municipais, pedindo postais sobre
castelos, que nos mandava reproduzir em barro, como se fosse a coisa
mais óbvia e natural do mundo. Lembro-me que me calhou o castelo de
Leiria, o que me deixou atordoada. Para ela não havia dificuldades, e
passava-nos a mensagem de que para nós também não podia haver», recorda
a escritora. «E lembro-me de a ver no laboratório sem vestir a bata,
com um casaco de felpuda gola de pele e de olharmos, suspensas, não
para a experiência mas para ver se a gola de pele se incendiava na
lamparina».
Aos 32 anos, Maria Virgínia casa com o capitão Ernesto Pestana,
comandante do Quartel de Santa Clara, mais tarde Governador Civil de
Coimbra. Antes fora alferes de artilharia no Corpo Expedicionário
Português, que participou na I Guerra Mundial. Foi dos poucos que
voltou para contar o horror da batalha de La Lys, que vitimou 327
oficiais e 7.098 praças. O gás mostarda usado pelos alemães
fragilizou-lhe para sempre a saúde.
Em sua casa, ao piano
O militar conheceu Virgínia ao ouvi-la cantar na Sé
Velha e na Igreja de Santa Cruz e dela se tornou admirador. No dia em
que recebeu o sim nupcial, mandou-a ir para a janela à noite e olhar na
direcção do quartel de Santa Clara. Por ela mandou colocar um soldado
em cada janela com uma luminária e a homenagem viu-se em toda a
Coimbra. Tiveram seis filhos, o último já tinha Virgínia 47 anos.
Amamentou-os todos um ano e como a licença de parto era de apenas um
mês, a criada levava-lhe o bebé à escola para a sessão alimentícia.
Dos tempos em que o marido foi Governador Civil, Virgínia recorda as
festas. «Quando veio cá a Princesa Margarida, em 1959, fomos a um
almoço no Estoril. Fiquei ao lado do Champalimaud. Que antipático!» Na
recepção ao Presidente do Brasil, Café Filho, Salazar reconheceu-a e
fez questão de ir cumprimentá-la.
Da vida ficou-lhe a pena pelas viagens que não fez. Para compensar,
a filha mais nova, Maria Aldegundes, já a levou consigo a Londres e à
Grécia, com a provecta idade de 80 anos. Qualquer passeio de carro lhe
põe a rir os olhos. Nunca se habituou a ver partir todos os que
conheceu. No momento é um choque, que depois aceita com naturalidade.
Em sua casa, em Coimbra, com a filha Ana, de 70 anos,e três dos onze bisnetos que já tem. Os netos são 13
Da mesma forma que passou por inúmeras rupturas
históricas - o advento da República, as duas guerras mundiais, a
ditadura, o 25 de Abril - sem permitir que estas deixassem marcas na
sua memória. Em 1974 porém, vendo a revolução na rua, apanhou um
autocarro e foi assistir a um comício do PCP para perceber o que era a
Liberdade. Tinha 75 anos. Hoje, atribui a sua longevidade ao optimismo
que sempre cultivou, à relativização dos problemas, aos muitos
quilómetros andados a pé e à dieta. Há 20 anos que apenas come sopa,
fruta e leite. Não tem colesterol e a custo a convenceram a tomar um
remédio para a irrigação cerebral. Prefere pedir fotos às pessoas que
conhece, escrevendo nas costas o nome respectivo em letrinha elaborada.
«E assim construo a memória de todos os dias.»
Com as colegas de Coimbra
ARQUIVO UNIVERSIDADE DE COIMBRA
O diploma que atesta a licenciatura de Maria Virgínia em Físico-Química, em 1922
No rio Vouga
Em 1916, finalista do Liceu de Viseu
Namoro à beira-rio: Virgínia com o noivo, Ernesto Pestana, e as futuras sogra e cunhada
Em 1933, com o primogénito, Nuno
Ernesto, em 1917, na I Guerra Mundial
Texto de Raquel Moleiro Fotografias actuais de Ana Baião