Tecnologia como cultura Público, 29 de Novembro de 2005
FERNANDO ILHARCO
O baixo individualismo e a alta aversão ao risco são dos
principais problemas da cultura portuguesa. Assim se
percebe que apesar de na União Europeia, em termos
percentuais, sermos um dos países com menos licenciados,
que um quinto deles vá trabalhar para o estrangeiro
entendimento da tecnologia como cultura, ou seja, a prática quotidiana possibilitada e contextualizada pela tecnologia como um determinado tipo de cultura contemporânea, que é o que no mais essencial é assumido no plano tecnológico, constitui um alinhar de esforços, de práticas e de ambições com o perfume dos tempos correntes. Claro que os planos são uma coisa, acontecem no domínio da reflexão, e as medidas enumeradas são uma outra coisa, que acontecem ou não num outro domínio, o da acção concreta que corta o tempo, separando o passado do futuro. Em boa medida, o que se passa entre um e outro domínio, também no caso do plano tecnológico, depende de uma forma importante da nossa cultura enquanto comunidade. Não do grau em que a tecnologia seja já parte da nossa cultura, mas da nossa cultura nacional, pré-tecnologia, como ela mesma nos nossos símbolos, valores, práticas, rotinas e padrões comportamentais, se tem manifestado e se manifesta hoje, mantendo-nos para nós mesmos como nós próprios somos.
A tecnologia tem vindo a ser estudada e investigada de variadíssimas formas. Desde uma prática sistemática, um tipo de arte, ou a aplicação prática da ciência, à ordenação eficiente dos recursos, à com-posição monumental que revela o mundo, muitas têm sido as perspectivas de entendimento de um dos fenómenos mais marcantes da história da humanidade. Mesmo que uma boa parte das interpretações deste quadro escape à visão instrumental, algo ingénua, do fenómeno, em todas elas a tecnologia nos surge com algum grau de manipulabilidade; como uma possibilidade de manipulação superior à da cultura. Pelo menos nas suas camadas superficiais, talvez a tecnologia possa ser entendida como a área mais trabalhável e por isso mais alterável da própria cultura. A cultura, por seu lado, percebida não apenas como os valores, as rotinas, as práticas, etc., que temos, mas antes como aquilo que genuinamente somos, é então não apenas uma espécie de lente para ver e ler o mundo mas antes é os nossos verdadeiros olhos, mente e sistema nervoso. Assim, hoje, entender a tecnologia como cultura é uma parte importante do processo de nos integrarmos na reordenação do poder mundial. Não deixando de constituir uma perspectiva correcta, porque consequente e útil no ambiente contemporâneo, o entendimento da tecnologia como cultura pressupõe de alguma maneira, mais, sugere como futuro, o entendimento da cultura como tecnologia. Partir da tecnologia como cultura levarnos- á sempre à cultura como tecnologia. Por isso, um dos grandes desafios, não apenas nosso, é o de pensar e possibilitar um quadro global em que cada cultura, da Europa à África, da América à Ásia, do Norte ao Sul e do Leste ao Oeste, tenha possibilidades equitativas de bem-estar, de paz e de futuro. Cultura nenhuma é estática, é certo. A cultura pode mesmo ser entendida como a dinâmicas como os diferentes grupos e comunidades se transformam e sobrevivem no tempo. No entanto, o quadro global actual, sobretudo porque global, impõe um grau de homogeneização que, longe de ser claro, está também longe de ser aceite por aqueles a quem ele toca. O problema é o de que a nova ordem global, dos mercados aos produtos culturais passando pela saúde, pela indústria e alimentação, foi desenhada ou simplesmente surgiu, beneficiando objectivamente determinadas comunidades nacionais e sociais. As culturas nacionais mais beneficiadas na nova ordem globalizada são aquelas onde são fortes os traços do individualismo e a disponibilidade para arriscar, bem como onde é menor o peso da hierarquia e o peso das divisões sociais e profissionais; todos aspectos onde a cultura portuguesa não é particularmente forte. Aliás o individualismo, no sentido de assentar no indivíduo, singular, a perspectiva primária da actividade da sociedade, mais do que a educação formal dos portugueses é o nosso verdadeiro problema. Temos uma população com uma das menores taxas de formação secundária e universitária entre os países da União Europeia, mas cerca de um quinto dos nossos licenciados vai procurar trabalho no estrangeiro O que aqui não bate é certo é não existirem, porque não são criadas nem pelos privados nem pelo Estado, oportunidades suficientes para os comparativamente poucos profissionais qualificados que todos os anos chegam ao mercado de trabalho. É um problema de iniciativa, de individualismo, de resultados e de recompensa, por um lado; pelo outro lado, é obviamente a velha questão das corporações, dos mercados fechados, do poder da mediocridade, das invejas, dos tráficos de influências. A não exposição generalizada do país à concorrência internacional permite que em muitas hierarquias continuem a subir não os mais competentes mas os que melhor manobram nos corredores das influências e dos enganos. É por isso que, a prazo, uma das mais importantes medidas do plano tecnológico é a generalização do ensino do inglês no primeiro ciclo do ensino básico. Por muitas e variadas razões, o inglês é hoje a língua da comunidade global; a prazo, o domínio do inglês poderá fazer mais pela iniciativa individual e pela capacidade de arriscar do que todos os cursos nacionais de empreendedorismo juntos. E dessa forma, quando a concorrência passar a ser intensa, deixa de ser opção não contratar os melhores. Cada sociedade é definida pela linguagem que a estrutura e desenvolve. A comunidade global assenta no inglês; num novo inglês, num novo latim. Não quer isto dizer, obviamente, que se deva tomar essa plataforma linguística como única. Esta questão vai mais longe quando colocada no domínio da cultura. A cultura é-nos dada, transmitida no tempo e espaço, pelos nossos antepassados e não a podemos mudar de um dia para o outro, nem de forma substancial numa geração. Se hoje os países anglo-saxónicos, com uma língua sem tu nem você, são beneficiados pelo quadro global marcado pelas redes, pela pouca relevância da hierarquia, pelo individualismo, noutros tempos outros tipos de culturas foram as beneficiadas. No entanto, numa época obcecada pelo correcto, correcto parece dever ser que, tal como não é aceitável que o género, a raça ou a religião constituam bases de discriminação, também nenhuma cultura, menos individualista ou menos avessa à incerteza, possa ser prejudicada pelo simples facto de ser o que é. Trata-se de algo imensamente difícil de resolver, evidentemente. Trata-se de reflectir e em ultima análise de influenciar o processo da constituição ontológica da sociedade global. ■ Professor Universitário www.ilharco.com