http://www.catholicnews.com/data/stories/cns/0800258.htm
http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/7188860.stm
e o comentário dum professor da Universidade La Sapienza:
«É surpreendente que quem escolheu como lema a célebre frase atribuída a Voltaire lutarei até a morte para que tu possas dizer o contrário do que penso , se oponha a que o Papa pronuncie um discurso na universidade de Roma La Sapienza».
Aproveito para deixar sobre este assunto um artigo que saiu hoje no Público e o discurso do Papa (em anexo).
Afinal, o
Papa discursou
20.01.2008,
Jorge Almeida Fernandes
O
caso pode ser tratado como "cretinice" ou como manifestação do
"espírito do tempo". Os editoriais da imprensa italiana de
quarta-feira, de esquerda ou direita, trucidavam os 67 professores que pediram
o cancelamento do convite a Bento XVI para falar na inauguração do ano lectivo
da Universidade La Sapienza, de Roma. "Uma ideia doentia" (La
Repubblica), "Venceu a intolerância" (Il Sole 24 Ore), "Derrota
dos laicos" (La Stampa), "Derrota do país" (Corriere della Sera)
ou "Em Roma o Papa não pode falar, na Turquia sim" (Il Giornale).
O filósofo Massimo Cacciari, presidente de Veneza, declarou que os 67 podem ser
"óptimos professores de Física (...) e outras ciências excelentes. Mas
deram prova de absoluta cretinice política." Acrescenta: "A presença
do Papa no interior da Universidade é oportuníssima."
Quando, na terça-feira, Bento XVI cancelou a sua participação na cerimónia um
professor exultou: "Vitória da autonomia" académica. Um estudante
proclamou: "O papa retira-se com as suas divisões". No dia seguinte,
perante a reacção da imprensa e de quase todos os quadrantes políticos,
queixaram-se de "linchamento mediático".
O mundo político tem alguma responsabilidade. Afogados no lixo de Nápoles, na
iminência de uma crise política e na véspera de uma decisão sobre a alteração
da lei eleitoral, governo e oposição deixaram correr o marfim. Só depois de o
Papa cancelar a ida à universidade, abrindo uma crise maior, é que o Governo
Prodi acordou.
A génese do "incidente" merece ser resumida. Quem tomou a iniciativa
foi um professor jubilado de La Sapienza, Marcello Cini, 84 anos, físico,
ex-comunista dissidente, veterano do anticlericalismo. Os 67 professores (entre
mais de 2000) são quase todos do seu antigo departamento. O protesto estudantil
circunscreve-se a 300 militantes "antiglobalização" ou
anarquistas (La Repubblica).
A carta dos 67 evoca um discurso do cardeal Ratzinger, em 1990, em que este -
citando o filósofo da ciência Paul Feyerabend - teria tentado legitimar a
condenação de Galileu. É uma falsificação do que ele disse. Ratzinger discutia
o "novo clima intelectual", as incertezas da modernidade sobre si
mesma e sobre a ciência, de que as contraditórias avaliações de Galileu eram um
sintoma.
Os 67 foram, aliás, acusados de não terem sequer lido o discurso. Por exemplo,
a citação de Feyerabend é incorrecta - diz-se que foi tirada da Wikipédia.
Pouco interessa.
Interessante é a carta que Cini enviou ao reitor, publicada em Il Manifesto (14
de Novembro). Convidar o Papa para falar no 705º aniversário da Sapienza é
"uma incrível violação da tradicional autonomia da universidade",
pois uma lectio magistralis como ele fez em Ratisbona (Setembro de 2006) só
deve ser feita em "instituições universitárias religiosas". O convite
viola a "repartição de competências entre a Academia e a Igreja".
Cini denuncia a "bela coragem" de Bento XVI para apagar os crimes da
cristandade. Mas o que verdadeiramente o enfurece é a persistente vontade do
"ex-chefe do Santo Ofício" em discutir as relações entre fé e razão.
"Mudou de estratégia. Não podendo já usar as fogueiras e as penas
corporais [da Inquisição], aprendeu com Ulisses. Utilizou a Deusa Razão dos
iluministas como Cavalo de Tróia para entrar na cidadela do conhecimento
científico e pô-la em ordem."
O que aparentemente o perturba em Ratzinger é ele ser um intelectual.
A querela do laicismo pode ser lida em diferentes geografias.
A Turquia ilustra um paradoxo. A Constituição está a ser revista. Os supostos
"islamistas" do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), de
Erdogan, querem abolir o ensino religioso nas escolas públicas. Os
"laicistas" opõem-se. Aqueles querem suprimir a proibição do uso de
lenço islâmico nos espaços públicos. Os outros denunciam isto como atentado à
"laicidade". Para já, ninguém ousa tocar na Direcção dos Assuntos
Religiosos, que controla o culto em todos os seus aspectos.
Ataturk instituiu, no fim dos anos 1920, um modelo de Estado laico inspirado no
francês. O ensino obrigatório da religião (sunismo hanefita) é muito posterior:
foi imposto pelos militares "laicistas", após o golpe de 1980.
Tratava-se, na altura, de travar a expansão do marxismo... através do islão.
O AKP quer reformular a lei da separação, de forma a que o Estado deixe de
controlar a religião e esta tenha livre expressão no espaço público. Este é o
centro do debate, que revela não só duas concepções da relação entre Estado e
religião mas também uma luta pelo poder, entre a velha elite kemalista e a nova
"burguesia piedosa".
Nos "países católicos", designadamente nos latinos, domina uma
dinâmica diferente. Há fortes tensões entre os governos, largos sectores da
sociedade civil e as conferências episcopais, visíveis na Itália e, sobretudo,
em Espanha. As recentes declarações de Sarkozy, atacando um laicismo radical
que quer "cortar a França das suas raízes cristãs", anunciam novo
foco de crispação.
É um puzzle. Por um lado, grande parte dos próprios católicos não se revê na
Igreja em matéria de costumes. Por outro, a acelerada secularização da
sociedade está a produzir um crescente relativismo moral. Em contrapartida, a
religião ou o espiritual ganham terreno com o fim das grandes utopias, como o
socialismo ou o progresso (Bruno Etienne).
É neste quadro que regressa à cena - inclusive em Portugal - "a religião
laicista", o velho anticlericalismo ou a "catolicofobia" de que
tem falado Vasco Pulido Valente.
É útil voltar atrás, ao debate de 2004 entre Ratzinger, então cardeal, e o
filósofo alemão Jürgen Habermas, um "ateu metódico". Para este, o
debate com a Igreja é incontornável na questão dos valores. O cristianismo,
diz, é o fundamento último da liberdade, dos direitos humanos, da civilização
ocidental: "Não dispomos de opções alternativas. Continuamos a alimentarmo-nos
desta fonte. Tudo o resto é palavreado pós-moderno." Perante o rolo
compressor da globalização, os Estados liberais devem salvaguardar "os
seus recursos culturais e morais, dos quais a religião faz parte".
Habermas citou o filósofo político E.W. Bockenforde. "A Igreja não deve
intervir directamente no domínio do Estado, na legislação ou nos poderes
executivo e judicial. Mas é preciso lembrar que, previamente à ética de facto
preconizada pelo Estado para os cidadãos, existe um ethos pré-político. O
Estado secularizado deve submeter-se às normas que o precedem. (...) A Igreja
tem o direito e o dever de se referir às normas fundamentais que decorrem da
própria essência do ser humano."
Quase esquecia: afinal, o Papa "falou" em La Sapienza. O seu discurso
foi lido por um professor, a encerrar a cerimónia, longamente aplaudido. Dizia
que La Sapienza é uma universidade "laica", livre da "autoridade
política e ecelesiástica".