Bibliotecas Públicas e os desafios da Sociedade da Informação

Editorial: As bibliotecas públicas portuguesas face aos desafios da sociedade da informação

José António Calixto
"Universidade de Sheffield, Departamento de Estudos de Informação"


Resumo


São apresentadas sumariamente as grandes transformações ocorridas nas bibliotecas públicas portuguesas nos últimos dez anos, no que diz respeito à utilização de Tecnologias de Informação e Comunicação. Faz-se referência à participação em projectos europeus e destaca-se a importância da cooperação, bem como o papel da PORBASE e da RILP.
São sublinhados novos papéis e novos serviços relacionados com as TIC, nomeadamente os serviços de informação ao cidadão e aprendizagem ao longo da vida.
São sublinhados os papéis sociais que as bibliotecas públicas desempenham, nomeadamente o combate à info-exclusão, e a sua importância acrescida face aos desenvolvimentos tecnológicos.

Quando há dez anos acabei o curso de Ciências Documentais o meu contacto mais próximo com um CD-ROM tinha sido através de uma fotocópia de uma qualquer revista estrangeira. Nós, os alunos daquela época, sobre a Internet tínhamos lido algumas coisas e tivemos a sorte de ter pesquisado bases de dados on-line, cortesia do Centro de Documentação Científica e Técnica. De qualquer modo, se bem me lembro, o sentimento generalizado entre nós era que isso das "novas tecnologias", como então eram conhecidas, era coisa para bibliotecas especializadas, isto é, as bem equipadas, universitárias, e centros de documentação especializados, embora pouco conhecimento tivéssemos dessa realidade.
A nossa perícia técnica em informática, adquirida através de laboriosas e árduas horas de leitura e explicações teóricas - mitigadas com algumas timoratas aproximações à máquina propriamente dita - consistia basicamente em dominar o essencial do MS-DOS, de um processador de texto Wordstar, do Lotus 123, e quanto a bases de dados, do Dbase 3 Plus. Falava-se então com insistência na introdução da Porbase, mas recordo que esse era um tema não muito querido entre mestres e estudantes, até por causa daquela coisa do UNIMARC. Na verdade, a grande novidade das bibliotecas públicas era então o empréstimo domiciliário, a animação, os serviços para crianças e os sectores audio-visuais.
Se recordo esses tempos (dez anos é muito tempo...) é para constatar os passos de gigante que as nossas bibliotecas públicas, e não só, felizmente deram. Deve dizer-se que alguns destes passos talvez tenham sido um tanto atabalhoados, como é natural em quem, andando, está a aprender a andar. Mas as tecnologias em dez anos passaram de "novas" a TI, e de TI passaram a TIC. Para os menos familiarizados com siglas, estamos a falar de Tecnologias de Informação a que depois se acrescentou a Comunicação.
As tecnologias evoluíram, obviamente. Há dez anos Bill Gates ainda não era o Senhor do Universo e as nossas prioridades centravam-se na construção das infra-estruturas de base, ou seja das bibliotecas. Posteriormente, os Projectos Europeus, nos quais várias bibliotecas portuguesas participaram, foram uma janela aberta para o mundo, puseram-nos em contacto com outra matriz - essencialmente britânica e nórdica - que não era o nosso molde original, vincadamente francês. Obrigaram-nos também a, internamente, contactar com outros parceiros tecnológicos e com bibliotecas de outro tipo. Paralelamente a RILP, Rede Informática de Leitura Pública, começou a avançar no terreno, em 1992. Já vai na RILP 2, e anunciam-se novos desenvolvimentos no campo da generalização das TIC nas bibliotecas públicas. A barreira da PORBASE, que por vezes nos pareceu intransponível, foi felizmente ultrapassada. 
Por outro lado, quer os nossos fornecedores quer os nossos clientes de informação, cada vez mais nos foram alertando para a necessidade de alargar a nossa noção de recurso de informação, empurrando-nos para o multimédia.
Das nossas preocupações iniciais de informatizar as rotinas - basicamente automatizar a catalogação e controlar os empréstimos - rapidamente passámos a ver as Tecnologias como um meio para o próprio fornecimento de informação, e novas possibilidades, novos papéis e novos serviços começaram a desenhar-se. Conceitos estranhos num primeiro momento, ou no mínimo vagos - como o serviço de informação à comunidade, aprendizagem aberta, aprendizagem ao longo da vida, apoio às empresas, acesso à Internet, correio electrónico - entraram nas nossas preocupações quotidianas. Ultrapassámos mesmo o velho pesadelo de encontrar espaço nos nossos acanhados depósitos para esse monstro em crescimento diário que era o "Diário da República" em papel. E começámos a perceber que podemos ser um ponto de acesso às tecnologias, e também de aprendizagem das tecnologias, muito importante para grandes sectores das nossas comunidades, precisamente os económica e socialmente mais frágeis.
As tecnologias invadiram o nosso quotidiano profissional e pessoal, e hoje não há dúvidas de que entrámos definitivamente na Sociedade da Informação. As nossas discussões hoje já não são sobre como usar a informática num contexto mais administrativo do que biblioteconómico, mas sim sobre a melhor forma de a utilizarmos para melhor cumprirmos os nossos papéis que, também por causa das tecnologias, não cessam de se alargar. Interrogamo-nos sobre as tecnologias mais apropriadas para as diversas comunidades em que as bibliotecas estão inseridas. Preocupamo-nos com o muito que temos de aprender para melhor as sabermos utilizar em proveito dessas comunidades. Passamos das rotinas aos serviços e do campo de simples intermediários de informação ao papel bem mais complexo de produtores de conteúdos digitais. São afinal as três questões essenciais levantadas pelo relatório do governo britânico "New Library: The People's Network": infra-estrutura técnica, formação profissional e criação de conteúdos (1997). Também nós temos de encontrar para a nossa realidade as respostas a estas questões.
As bibliotecas públicas têm desde o seu nascimento uma matriz democrática. Era já uma preocupação democrática a de D. António da Costa quando criou as bibliotecas populares em 1870. As diversas versões do Manifesto da UNESCO têm sucessivamente reafirmado esta sua missão de contribuir para uma sociedade democrática. E não é por acaso que o seu (re)nascimento, em que temos tido a felicidade de participar nos últimos quinze anos, está intimamente ligado a uma das maiores conquistas do 25 de Abril: o Poder Local Democrático.
A democracia implica a existência de cidadãos informados, com espírito crítico, habituados a procurar a informação e ideias, a escolher umas e a rejeitar outras, a falar, a expressar-se e a discutir. Implica ainda um fácil acesso à Administração Pública e um controle permanente dos cidadãos sobre aqueles que mandataram para os governar. Isto é, cidadãos instruídos, educados e curiosos, capazes de se manterem em aprendizagem permanente ao longo da sua vida. Implica igualmente mecanismos sociais reguladores das desigualdades sociais: mecanismos económicos, mecanismos sociais, mecanismos culturais e educacionais. Ora a biblioteca pública é precisamente um desses mecanismos.
Investigação levada a cabo tanto em Portugal como no estrangeiro vem demonstrando inequivocamente o quão as bibliotecas públicas são importantes para as comunidades locais terem acesso à informação, ao conhecimento e às ideias, de uma forma livre e sem discriminação originada por diferenças económicas. Igualmente há indícios claros do papel que têm tido em termos de combate à exclusão social, na luta contra as desigualdades no acesso a bens culturais, informativos e de lazer. O seu papel tem sido também essencial na manutenção da identidade local das comunidades, numa sociedade cada vez com maior mobilidade social e maiores desenraizamentos.
A generalização das TIC vem acentuar ainda mais a importância destes papéis sociais. Como sabemos o acesso à informação digital implica a utilização de meios informáticos ainda inexistentes na maior parte dos lares portugueses. As habilidades necessárias para lidar com eles e o apoio à sua utilização não se encontram disponíveis de forma gratuita em muitos espaços para além da biblioteca pública. Por outro lado é na biblioteca pública que se encontram os suportes não digitais, sejam impressos, sejam sob a forma de registos audiovisuais. Pensamos por isso, e nisto estamos bem acompanhados, que a biblioteca pública está numa posição privilegiada no combate à info-exclusão, como é aliás preconizado no "Livro Verde para a Sociedade da Informação em Portugal", da responsabilidade do Ministério da Ciência e Tecnologia (1997). Também o relatório "Public Libraries in the Information Society"(1997) defende uma ideia chave que vai nesta linha: a sociedade de informação precisa de bibliotecas públicas.

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